terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Pequena Miss Sunshine e a negação da metamorfose

Um filme divertido, apesar de tudo. Para Sérgio Ripardo o humor vence o medo em Pequena Miss Sunshine. Em meio à sociedade americana que prega os ganhos materiais como única via para o sucesso individual, os Hoover, uma típica família estadunidense - típica porque esquisita, diga-se - gasta suas últimas poupanças na busca da realização do sonho da caçula, a original Olive, selecionada para participar de um concurso de Miss Mirim, na Califórnia.

Tentarei aqui mostrar semelhanças e rupturas entre o filme e a novela de Franz Kafka, A Metamorfose, que aborda uma decadente família burguesa na Alemanha do início do século XX. Nesta, com os negócios do pai falidos, Gregor Samsa passa a viver para sustentar sua família trabalhando de caixeiro-viajante. Mesmo conseguindo os sustentos da casa, seu pai é sempre ríspido com o jovem Gregor, querendo manter-se, burguesamente, como o chefe da família. Contra a agressividade do pai, a suavidade da mãe de Gregor, uma frágil asmática, busca amenizar a situação. A irmã de Gregor é seu maior xodó, e como compensação a seu fracasso com as mulheres, chega a sentir por ela desejos incestuosos.

Certo dia Gregor acorda metamorfoseado em um cascudo inseto com incontáveis perninhas. Amendrontado com seu novo fenótipo, o jovem magoa-se com o desespero e a repulsa da mãe e da irmã e do desprezo do pai. Sua família não compreende sua nova voz de inseto, mas o jovem atordoado ainda é capaz de entender a linguagem humana. O metamorfoseado vive a angústia de entender um mundo que já não o compreende mais, e por isso perde as esperanças na vida. Passa a viver trancafiado no quarto, sendo um fardo para a família, que busca poupá-lo da exposição a uma sociedade preconceituosa e intolerante, que certamente não compreenderia a situação. A metamorfose de Grego Samsa cria uma couraça em seu ser aflito ante os sofrimentos e opções da existência moderna. Para Theodor Adorno "Os protocolos herméticos de Kafka contêm a gênese social da esquizofrenia", e para Lukács a obra kafkatiana representa a decadência tardia da sociedade burguesa.

Gregor Samsa é um indivíduo que tem sua existência esfacelada por não consegue resistir às pressões da vida social moderna. Sua história é um retrato da derrota da liberdade e do pluralismo sócio-cultural no capitalismo monopolista do século XX. A vitória da moral burguesa, e dos padrões sociais exigidos pelo mercado.

Pequena Miss Sunshine também retrata uma família de desfavorecidos no mercado capitalista. Todos na família são a personificação dos "fracassados" no american way of life, membros de uma parcela da classe média que tornou-se incapaz de realizar seus ideais. O patriarca, Richard (Greg Kinnear), complexado pelos valores estadunidenses, dá palestras de auto-ajuda, e apesar de desenvolver seus "Nove passos para o sucesso" não é ele mesmo um exemplo exitoso de vendas. Seu pai (Alan Arkin) é um velho viciado em heroína. A mãe Sheryl (Toni Collette), busca amenizar as obsessões burguesas de Richard, principalmente as pressões exercidas para que os filhos não tornem-se "losers". O casamento dos dois também não reflete o ideal de estabilidade e romantismo da ideologia Yankee. Steve Carel (o mesmo de Virgem de 40 anos) é Frank, o professor homossexual especializado em Proust (que se auto-intitula o melhor em Proust nos EUA). Ele tenta suicídio após se separar de seu namorado, que o trocara por outro especialista em Proust, e este passa a ser reconhecido na academia como o melhor pensador sobre o literato francês nos EUA. Após esse fatídico episódio passa a receber auxílio da família Hoover. O filho mais velho é um niilista fã de Nietzsche que "odeia todo mundo". Ele tem verdadeiro asco dos produtos plastificados da indústria cultural, do discurso robotizante self-help de seu pai, enfim é um peixe fora d´água no mundo mercantilizado dos EUA. Por fim a caçula ingênua e autêntica Olive (Abigal Breslin). É ela a principal personagem na negação da metamorfose operada em Pequena Miss Sunshine.

Olive promove a recusa de ser igual a todos numa sociedade de massas que padroniza os indivíduos desde a mais tenra infância. E considerando-se que ela promove essa ruptura no interior do universo totalitário da moda, podemos considerá-la uma jovem revolucionária, uma inovadora nos padrões estéticos e éticos. Uma dupla ruptura com os ditames da indústria cultural. Esteticamente Olive rompe com o ícone pop de beleza jovem. Enquanto as outras modelos mirins plastificam-se em Barbies de carne e osso, nossa pequena miss sunshine mantem-se peculiar e espontânea, além de ser ligeiramente gordinha. Eticamente ela é um fracasso na sociedade do espetáculo. O pressuposto dessa é a cartilha do entretenimento profissional baseado na razão instrumental. Uma arte de distrair consumida como diversão conformada. Sua performance artística no concurso de Miss mirin promove o estardalhaço entre o público conservador de papais, mamães e vovós ao levar o sexo - mesmo sem saber! - ao universo infantil em uma dancinha nada puritana! A própria inocência de Olive é uma crítica escrachadamente irônica à banalização do sexo.

E é neste momento que se confirma a negação da metamorfose, operada em conjunto pela excêntrica família Hoover. Ao perceber a reação hostil da platéia, os Hoovers levantam-se de suas cadeiras e passam a cantar e incentivar a jovem Olive - que parece ser a única a não dar a mínima bola para a opinião pública. Richard chega a agredir fisicamente um organizador do concurso que tentara expulsar sua filha do palco. A inocência de Olive é o combustível para ignorar a violência do império moral da maioria e traz com ela, a reboque, o apoio contestador de sua família. Tal contraste faz o público se identificar com a causa dos Hoovers.Como resultado temos um elogio aos losers, os desprestigiados no mercado capitalista, a minoria oprimida pelo império moral da maioria na democracia de mercado estadunidense. Com sua simplicidade infantil a Pequena Miss Sunshine nos mostra como indivíduos que não "vendem bem seu peixe" - não são aceitas como boas mercadorias no mercado de trabalho - podem ser pessoas muito mais realizadas e interessantes, com muito mais conteúdo humano, do que os que seguem mecanicamente os padrões mercadológicos. Então a negatividade dos losers em seu significado na cultura capitalista é suprassumida dialeticamente ao considerar-se a possibilidade da maior riqueza do conteúdo humano na fuga dos modelos mecânicos do mercado. É desconstruído o mito dos derrotados e dos fracassados e denunciado os mecanismos sociais autoritários de controle social que levam à sua crença. A sociedade de consumo necessita de indivíduos padronizados, que participem compulsivamente dos processos de reprodução da economia capitalista: a produção como trabalho alienado e o consumo como lazer reificante. O pressuposto para o sucesso desse estilo de vida é aniquilação do "homem político", a despolitização coletiva.

Ao fim Olive é proibida de voltar a participar de concursos - de qualquer tipo que seja! - no estado da Califórnia. Uma punição por ser diferente. Mas a jovem não muda em nada seu modo de ser por causa diso.

Filmes como Pequena Miss Sunshine promovem a repolitização do cotidiano ao desconstruírem os mecanismo de controle social estabelecidos. Abrem espaço para liberdade individual e coletiva na autoritária democracia de massas em que vivemos. Contudo, esse projeto libertário só pode concretizar-se se filmes como esse forem produzidos periodicamente. Isso porque os mecanismos de controle social do capitalismo têm o poder de ressignificar conteúdos políticos, adequando-os à sociedade de mercado. O maior exemplo contemporâneo deste processo acontece com a figura de Che Guevara: de revolucionário comunista ele é ressignificado em comportado símbolo de "rebeldia", luta por justiça social que só poderia ser realizada nos padrões atuais do social-liberalismo. Desse modo, pôsteres do "Che Pop" passam a aparecer na parede do quarto de personagens "boa pinta" das novelas da Globo. Cria-se um novo padrão, sufoca-se a liberdade. A justiça social transforma-se em eterna promessa ideológica.

Por isso é preciso estender a idéia de desconstrução cultural para todos os ramos da arte: filmes, pinturas, músicas, teatro, literatura. Desconstruir tanto as padronizações mercadológicas quantos as ressignificações capitalistas. Descontrolar os mecanismos de controle social das democracias de mercado massificadas. Um movimento artístico em torno dessas idéias poderia estimular uma verdadeira revolução cultural rumo a uma humanidade mais livre, mais inteligente e verdadeiramente democrática.

O pessimismo com o atual estágio da vida era o pressuposto da esperança militante dos filósofos da Escola de Frankfurt, a certeza de que é possível construir, desde hoje, um mundo melhor. Termino com um pensamento de Adorno, que serve como ilustração da mensagem artística que identifiquei em Pequena Miss Sunshine, a qual proponho (e torço) que se expanda, e se renove, constantemente:
"...O que seria a felicidade que não se medisse pela incomensurável tristeza com o que existe ? Pois o curso do mundo está transtornado. Quem por precaução a ele se adapta, torna-se por isso mesmo um participante da loucura, enquanto só o excêntrico conseguiria agüentar firme e oferecer resistência à absurdidade. Só ele seria capaz de refletir sobre o ilusório do desastre, a ´irrealidade do desespero´, e de se conscientizar não só de que ele ainda vive, mas de que ainda há vida" (Mínima Moralia [§ 128]).

Música incidental:http://paulinho-da-viola.letras.terra.com.br/letras/486092/

Um comentário:

Carolina Chalfun Mainoth disse...

Ser looser não é tão ruim , assim ? Tô mais calma agora com a minha condição ! auhauhauhauhau
Afinal, somos seres humanos ! rsrsrs
Englander , vc é foda !