sábado, 10 de novembro de 2007

A cultura de massas e a estigmatização do Movimento Estudantil


Para ler este texto é fundamental que deixemos claro que a geração de estudantes e militantes brasileiros da década de 60 não foi de todo derrotada. Nem na política nem na cultura. Temos que ter mais visão histórica. Sem esta geração o Brasil não teria pela primeira vez na história um governo de centro com um pezinho na esquerda. E há que se valorizar muito isso, mas não nos resignarmos a essa realidade, queremos mais. A via institucional não excluí as lutas nas ruas, pelo contrário, devem ser pensadas em conjunto na disputa por uma hegemonia dos valores e práticas socialistas, tanto no que se refere às questões imediatas como as de longo prazo.

Pensando nas representações simbólicas criadas pela cultura de massas, organicamente ligada ao processo social contemporâneo, poderemos compreender melhor aspectos da nova política educacional que está sendo implantada no país. A atual novela das oito "Duas Caras" sem dúvida é um marco para a retomada do "nacional-popular", tanto na arte quanto na política brasileiras. Mas o passado só se repete como farsa, e dessa vez o nacional-popular está inserido no contexto da globalização neoliberal. Se por um lado o samba roubado da personagem de Eri Johnson nos faz lembrar Zé Keti em Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, e os tempos combativos de Cinema Novo, tematizando como a arte popular ainda é explorada, roubada e oprimida pela indústria cultural (que também lucra muito com a incorporação da arte popular aos seus trâmites); por outro lado, o apelido da personagem de Suzana Vieira simboliza muito bem o atual projeto liberal que se apropria de um discurso popular para se legitimar. O termo "Dama de Titâneo" resume um processo social efetivo de repressão aos estudantes das universidades federais e da PUC de São Paulo que lutam contra as reformas do sistema universitário. Estas, como eixo geral, pausterizam cada vez mais a educação, unindo a massificação das universidades com a mercantilização do ensino. O saber será cada vez mais banalizado e voltado para os interesses do mercado. Nossa Margaret Tatcher não é uma primeira ministra, mas a proprietária simbólica de uma instituição de ensino superior, não mais tratado como meio de ilustração emancipatória. A universidade deverá formar cada vez menos consciências críticas, limitando-se a ser um mero meio de produção de consciências instrumentais , técnicos especializados nas ferramentas do sistema, distantes dos meios cognitivos que os permitiriam uma crítica global da sociedade. Em suma, é a vitória momentânea do indivíduo liberal, da guerra de todos contra todos. O lema é estudar para ser competitivo, submisso às regras do mercado de trabalho capitalista.

A dialética do iluminismo está viva em seu curso histórico. Não é como um tufão que quando surge nos faz sentir condenados a sua passagem. Está em disputa, é a luta política que determinará se os ideais emancipatórios da modernidade serão popularizados ou se serão reificados, inseridos de modo acrítico às regras da educação na era da globalização neoliberal, formando homens-massa sujeitos à eternização do presente. Passamos por um momento de fortalecimento da dominação sistêmica, a cultura de massas vem estigmatizando negativamente o movimento estudantil combativo. Em Tropa de Elite os estudantes universitários são representados em geral como maconheiros alienados que financiam o tráfico de drogas. Em Duas Caras (a atual novela das oito) os militantes do movimentos estudantil são especificamente retratados como baderneiros com "ódio no coração", rebeldes sem causa que rasgam livros e quebram computadores em defesa da "universidade do povo". Duas construções simbólicas que partem de um olhar preconceituoso sobre a realidade, colocando-se intencionalmente contra a luta e os valores do movimento estudantil.

Para superar estes esteriótipos a esquerda precisa formular um projeto de educação alternativo à mercantilização do saber com viabilidade prática de aplicação para o presente. A crítica libertária da dialética negativa só poderá se efetivar com a complementação de uma dialética (pro)positiva. A construção de uma imagem digna às intenções públicas do movimento estudantil não pode se dar apenas com base na crítica social e em contra-representações culturais. Ela se dará sobretudo em conjunto com o desenvolvimento de práticas que o permitam concentrar forças para ser novamente um agente de peso na política nacional.

Companheiros, nos fica o desafio de atuar no tempo presente!
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Segue abaixo a sinopse do referido capítulo de Duas Caras:

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A revista Veja e sua crítica autoritária sobre Hugo Chávez - (um comentário crítico à matéria “À Sombra de ‘El Supremo’, de 7 de novembro de 2007)


Infelizmente concordo com a revista Veja que as alterações constitucionais venezuelanas criando as novas leis: “de exceção", de Regiões Militares Especiais e de criação, pelo presidente, de comunas auto-gestionadas (?) são excessivamente centralizadoras e contém em si o risco de autoritarismo.

Chávez vem mesmo abusando do personalismo e da centralização. Contudo estes fatores podem mais aproximá-lo de uma "via stalinista" do que de Hitler e Mussolini, como quer a comparação tendenciosa e sensacionalista que a revista "Veja" promove em sua matéria de capa desta semana. Estas medidas aproximam o chavismo de uma tradicional via autoritária de socialismo (deturpado, pois o socialismo só pode se concretizar em uma democracia PLENA), e infelizmente podem distanciá-lo de um importante e inovador "socialismo do século XXI".

Também a megalomania do discurso "bolivariano" é passível de críticas, pois nada indica que Chávez seja um líder continental, e nem seria bom que acumulasse tanto poder.

Porém, as críticas promovidas por "Veja" são, como era de se esperar, autoritárias, pois não apenas usam de sensacionalismo para depreciar Chávez (como no caso da comparação com nazi-fascismo), mas também desqualificam quem apóia seu governo, que, aliás, são democraticamente mais da metade da população venezuelana. Os jovens pobres que têm a oportunidade de estudar nas novas universidades criadas pelo atual governo são tachados de "inocentes" e de "massa de manobra". Ora, se um governo é bom para os empresários é muito natural que os empresários apóiem esse governo (como no caso da Ditadura Militar brasileira), pois as políticas de Estado são direcionadas para esta classe. Então, se o governo eleito democraticamente de Hugo Chávez prefere direcionar suas políticas públicas para os trabalhadores pobres (não apenas os jovens), não há por que se espantar que essa classe dê apoio a tal governo. As diferentes opções políticas e ideológicas irão agradar diferentes classes sociais, ao menos preferencialmente. É isso que o discurso político conservador presente na Veja quer ocultar, como se todos que apóiam Chavez fossem "manipulados" e "inocentes", ou seja, a Veja está desdenhando da opinião pública do povo Venezuelano. E quem desdenha da opinião pública de um outro povo além de anti-democrático está sendo imperialista. Portanto, a Veja faz com Chávez o mesmo que critica nele.

Quanto ao discurso sensacionalista sobre o petróleo, aqui se constata todo o conservadorismo presente na ideologia da revista Veja. Ora, o petróleo é um recurso mineral, bem público de uma nação. Usar os imensos lucros da petrolífera estatal, PDVSA - que chegam a níveis astronômicos devido à valorização do barril do petróleo - para investir em serviços públicos como saúde, educação, moradia, tecnologia, etc. e ainda criar programas sociais assistenciais para quem necessita é o que se esperava de qualquer político republicano e democrático, uma atitude elogiável. Que motivo há para condenar isso senão uma oposição "ideológica" (em outras palavras, de discurso que favorece certas classes sociais)? A Veja preferia que este dinheiro estivesse sendo usado para pagar dívidas ao FMI? Ou para financiar as multinacionais? Respondam jornalistas da Veja!

E a reforma agrária?! A Veja nem lembra mais que ela também está sendo feita na Venezuela. Quem antes estava desempregado ou ganhava um salário rural "de fome" hoje está tendo a oportunidade de plantar em suas próprias terras e com financiamento... do governo! Realmente estes devem ter mil motivos para odiar o governo de Hugo Chávez!
A resvista também omite que a nova reforma constitucional reduz a jornada de trabalho diária dos venezuelanos de 8 horas para 6 horas. Os trabalhadores terão mais tempo e liberdade para o estudo, o lazer, a cultura, a política e organização comunitária. O trabalho torna-se um processo menos compulsório e mais prazeroso. Em oposição ao que acontece em países que seguem a cartilha neolibreal, com aumento da carga de trabalho e restrição aos direitos trabalhistas, na Venezuela ocorre a expansão dos direitos dos trabalhadores.

Por fim a Veja ainda diz que o governo chavista está se armando para violentar o povo venezuelano quando este se voltar contra ele. Se o chavisamo seguir o caminho stalinista da burocratização e da centralização excessiva isso até poderá se tornar uma hipótese futura. Mas o mais incrível é como os jornalistas da Veja se esquecem que o governo eleito, democraticamente, de Chávez, passou por uma tentativa de Golpe de Estado em 2002, apoiado, publicamente, pela elite "liberal" Venezuelana e pela CIA e os "democratas" do governo dos EUA. Então, tudo indica que o governo de Chavez está se armando contra esses dois agentes sociais específicos e não contra o povo venezuelano.

Contudo, os socialistas não devem praticar idolatrias. Mesmo apoiando o governo de Chávez até o momento, sou radicalmente contra as propostas de alterações constitucionais e realmente torço para que o povo da Venezuela vote, mais uma vez democraticamente, pelo veto de tais medidas. As mudanças constitucionais tem como objetivo permitir a aceleraração do processo de reformas sociais socialistas que vem sendo aprovadas pela maioria da população venezuelana. Porém, do modo que estão sendo propostas concentram em demasia o poder nas mãos do presidente Hugo Chávez, aumentando o risco de uma virada autoritária do movimento bolivariano, até então socialista e democrático.

Em níveis moderados a centralização do Estado pode facilitar que este atenda as demandas populares por serviços e políticas sociais fundamentais para uma sociedade verdadeiramente democrática. Mas em níveis exagerados a centralização sufoca as ações da sociedade civil e as demandas da opinião pública. O Estado deixa de existir para o povo e passa a existir para si. Medidas como o controle do Banco Central pelo poder público são fundamentais para se romper com a ditadura econômica e tecnocrática dos "neoliberais" (eufemismo para conservadores que acham que o povo não deve dar opinião sobre a organização econômica). Se o povo eleger, democraticamente, Chávez por mais um mandato, ok, afinal ele já simboliza o processo de mudança social efetivo por que passa a Venezuela. Mas para que ele não se torne um ditador é fundamental que os autogovernos comunais sejam criados pelo povo e não impostos pelo presidente e que este não tenha o poder de decretar "estado de exceção" quando quiser e bem entender, acabando com as garantias dos direitos civis e a liberdade de imprensa - numa democracia é fundamental que a oposição possa ter voz, seja nas escolas, nas ruas ou na assembléia federal (e desta ela desistiu de participar por livre e espontânea vontade).

A Venezuela já é uma nova experiência socialista. Tem a oportunidade de não repetir os erros da experiência fracassada do "Leste europeu" e ser uma alternativa ao imperial capitalismo contemporâneo, socialmente e ecologicamente insustentável. O socialismo do século XXI tem reais condições para se tornar uma alternativa efetiva à civilização capitalista, mas para isso não poderá repetir os conhecidos erros do passado.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Augusto Boal e uma lição de arte e política


Hoje tive o grande prazer de assistir a uma palestra de Augusto Bola e do rubro-negro e pentacampeão - como eu - Arthur Poerner no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. O assunto da noite era “Arte engajada ou solidária limita a expressão artística?” e ambos os palestrantes levantaram questões muito instigantes sobre os CPCs e as importantes conquistas contemporâneas – sim, há arte além da pós-modernidade! Vou relatar somente um momento desse rico debate, justamente seu ato final, quando tomei coragem e perguntei ao Boal algo que me interpelo há algum tempo e serve tanto para a estética quanto para a política:
-Como chegar aos populares com uma proposta de arte que não seja impositiva, com excesso de valores da vanguarda de esquerda, constituindo uma arte que seja de fato uma livre expressão popular, mas também combativa, visto que criada por pessoas provenientes de classes e grupos sociais "oprimidos"?

Boal citou uma experiência sua na época dos CPCs - instituição considerada muito importante e celebrada por ele, mas que também, após uma autocrítica, revelou elementos autoritários e excesso de dirigismo imposto pela cúpula da UNE. No caso lembrado, no ruir da década de sessenta, Boal apresentava uma peça no nordeste brasileiro junto às Ligas Camponesas. Ele não lembrou o nome da montagem, mas retomou a repercussão de uma cena, que seria uns dos pretextos para futuras mudanças de concepções estético-políticas do Teatro do Oprimido em relação aos CPCs. Neste ato Boal e os demais atores seguravam imponentes fuzis coloridos convocando o público camponês à lutar. Ao fim da peça um camponês emocionado lhe perguntou:
-Vocês são sinceros né?
Boal respondeu sem pestanejar que “sim”. Ao que o camponês lhe faz um surpreendente convite:
-Então pega esses fuzis de vocês e vem nos ajudar porque o coronel invadiu as nossas terra!
Perplexo o então jovem teatrólogo busca uma modo resolver a situação do melhor modo possível:
-Mas isso é um mal entendido! Nossos fuzis não atiram!
-Como não atiram?? Mas fuzil que não atira há de servi para que?
Na palestra Boal pausa para reflexão - "naquela época (dos CPCs) a gente tinha uma questão com a mensagem, as vezes viam a peça, falavam que ela não tava tão boa..., mas aí perguntavam logo qual era a mensagem?! Se o conteúdo revolucionário fosse bom todo mundo ficava feliz!” - E retorna a sua estória:
-Nossos fuzis servem para estimular! Quando nós gritamos para o público "Vamos à luta!" nossa função é estimular a ação popular!
-Ahhh..., mas vocês são sinceros mesmo né?
-Sim, nós somos...
-Então vamos lá com a gente porque a gente tem fuzil para todo mundo!
Cada vez mais perplexo com a situação, Boal tem serenidade suficiente para manter sua sinceridade no momento em que todas as contradições entre a vanguarda socialista, branca, culta e de classe média urbana e os militantes camponeses, mulatos, negros e mamelucos, sem estudo, pobres posseiros em conflito pela posse da terra com violentos coronéis, vinham à tona em uma simples conversa, em que a até pouco tempo invisível fronteira entre arte e política aparecia agora de modo brusco e constrangedor para ambos os lados...
-Não, não, o senhor não está entendendo, nós somos artistas, não pegamos em armas...
O palestrante não contou se a conversa terminou por aí, disse apenas que o camponês seguiu com seus companheiros para o enfrentamento e que a comitiva de atores do Teatro de Arena embarcou em um avião e voltou para São Paulo.
De volta a 2007 e a palestra no IFCS Boal reflete: "era isso, nós instigávamos os outros a fazer o que nós não tínhamos coragem de fazer. Eu, o branco, o homem, o urbano ensinava ao negro, à mulher e ao camponês como se libertar de suas opressões..., realmente tinha um certo autoritarismo nestas práticas". Sem querem diminuir a grandeza de Boal e dos seus companheiros de Teatro de Arena, até hoje ainda parece haver uma certa dificuldade de assumir certas identidades que estavam esquecidas naquele especial momento de mobilização das esquerdas no Brasil, faltou lembrar que os atores eram também membros da classe média querendo levar consciência de classe revolucionária aos trabalhadores do campo.
Questões como as que surgiram neste caso levaram nosso teatrólogo a reformular alguns pressupostos colocados pelos CPCs e constituir uma nova política para sua arte. "No Teatro do Oprimido nós não incentivamos ninguém a fazer nada do que nós também não possamos fazer", disse o franco Boal. Hoje Teatro do Oprimido não quer somente fomentar a reflexão crítica nos públicos populares por onde se apresenta - escolas públicas do Rio de Janeiro, da Baixada Fluminense e também em diversos presídios -, a Cia. pretende que os próprios populares façam a sua arte. Não se trata mais de levar uma cultura que se quer revolucionária as classes e grupos sociais oprimidos e sim ensinar os meios para que estes expressem livremente a sua arte e a sua cultura, seja revolucionária ou não. O próprio desenvolvimento da sensibilidade estética cria um novo universo de percepções sociais que serão a chave para novas reivindicações e lutas políticas. A própria educação estética é uma política e o estímulo à criação de uma "arte popular" feita de fato pelo povo é a maior revolução que a vanguarda artística pode fazer.

Saí da palestra com olhos brilhando, cheio de idéias e questionamentos “mis”, além dos telefones de contato de Arthur Poerner e do Teatro do Oprimido. Quero convidá-los para palestra especificamente voltada ao movimento estudantil, junto com outro eminente freqüentador da livraria-café do IFCS, Eduardo Coutinho. A geração de sessenta ainda tem muito a ensinar à nossa juventude. Olhando para a realidade contemporânea da UNE e da CONLUTE enxergamos o vazio da ausência de ações populares destas entidades. Só nos resta então confessar, humildemente, Eles são muito mais atuais do que nós!

domingo, 23 de setembro de 2007

Sobre o sentido dos sacrifícios


Ando pensando sobre o sofrimento. O sofrimento cotidiano. Quantos sacrifícios são feitos para cumprirmos nossos compromissos com os outros: o trabalho, a faculdade, as pesquisas da faculdade, a família, os amigos, a (falta de) namorada. Podem indagar se todos esses compromissos também não nos satisfazem individualmente, responderei sem pestajar que sim, mas em parte. Hoje em dia trabalhamos tanto que o tempo para a diversão fica extremamente curto. Sem o tempo do lazer o tempo do trabalho fica sem prazer. Cansados e sem tempo acabamos burocratizando nossas relações pessoais. É um ciclo vicioso e irritante que tira nossa energia vital e sufoca nossas individualidades.


Talvez eu esteja estudando demais.

Ou talvez isso não seja um problema só meu.


O tempo que eu gasto fazendo resumos e relatórios burocráticos e desnecessários poderiam ser gastos com Neruda, Bandeira, Caetano, pegando jacaré na praia e dividindo uma porção de pescada com os amigos. A supermodernidade é avessa a amizades. O assalariado é um ser alienado das coisas mais doces da vida.


Trabalhar, estudar, trabalhar e estudar mais pra não ficar desqualificado no mercado de trabalho. Depois serei um sábio professor estressado, provavelmente calvo, explorado pelos barões da indústria da educação superior. Esqueçam o conhecimento, um diploma agora é um signo da exploração. O saber é um saber direcionado para o mercado. Quantos alunos terão tempo e/ou vontade para ler Marx pensando em contruir uma sociedade mais justa? E Weber para uma modernidade menos burocrática? Os alunos terão amor sufiente ao conhecimento para ter a paciência necessária à leitura de Durkheim? A zilmodernidade também não gosta de profundidades. A sociologia das univeresquinas, univershoppings e universupermercadões estará ao nível da superfície mercadológica. Simples disciplina para preenchimento de currículo obrigatório, uma sociologia para boi dormir.

Mesmo sabendo que estou exagerando, um pouco, o horizonte a minha frente não parece ser dos mais animadores mesmo: o mercado de trabalho (das ciências sociais). Para reestabelecer o sentido da minha vida, nada melhor que uma boa teoria heterodoxa: os ensimentos (devidamente filtrados) do pós-estruturalismo. Considerar a inexistências das estruturas seria uma grande besteira pós-moderna, mas pensar nas possibilidades de transformações no interior de certas estruturas consolidadas - como a zilmodernidade capitalista - é muito pertinente. A foto escolhida não foi por acaso, é de uma cena do excelente filme alemão Edukators, este, bem ao modo pós-estruturalista, narra as ações diretas de três jovens que sabotam mansões de ricos empresários alemães. Eles não mudam a sociedade, mas contestam a soberba e o sentimento de segurança da elite alemã. Fruem um gozo momentâneo de poder, prazer semelhante a quem compra uma mercadoria desnecessária sob a hipnose bombardeante de incontáveis anúncios comerciais. São sensações semelhantes pois compartilham a mesma estrutura da sociedade de consumo. Mas uma é autômata, pura posse fria do que a corrente social geral nos impõe, elementar reificação do mundo das merdorias. A outra é quente, transgressora, abre um novo universo de possibilidades para a vida, universo inalcansável para os simples consumistas.
Com o pós-estruturalismo podemos perceber que todo coração é uma célula revolucionária, capaz de reaquecer as relações pessoais, enriquecer o sentido da existência e abrir novas possibilidades, pessoais e sociais, para as nossas vidas, mesmo que momentaneamente só possamos concretizar as do primeiro tipo.

Por tudo isso, não contesto a presença de sacrifícios em nosso cotidiano, sacrifícios são necessários, não se pode fazer tudo. Saber escolher é o segredo da vida. Mas como jovem de meu tempo, e dado a existencialismos perniciosos, ando parando para pensar no sentido dos sacrifícios que tenho feito no cotidiano. Ainda não encontrei uma solução para meus questionamentos, mas acho que seria uma ilusão pensar que só ir mais a praia - será isso possível? - me deixaria mais resolvido, mas provavelmente ficaria mais feliz... ;=)
(PS: Bem que nossa elite política está merecendo uma ação direta a la Edukators.
PS2:Tenho que lembrar de apagar este post antes de começar a procurar emprego!)


segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A Escravidão Moderna na Amazônia - Uma interpretação sociológica


Resumo: Este trabalho tem como maior preocupação pensar as possibilidades contemporâneas de uma reforma agrária ecológicamente e socialmente viável para a região amazônica, capaz de garantir o futuro da floresta bem como fazer valer os direitos trabalhistas e a justiça social para os trabalhadores locais. As partes I e II deste estudo são dedicadas à atuação do Estado brasileiro na região amazônica e a escravidão moderna na floresta, respectivamente, tendo como base em uma interpretação sociológica do livro Vidas Roubadas - a escrividão moderna na amazônia brasileira, da jornalista Binka Le Breton. A parte III é dedicada aos projetos alternativos da sociedade civil para a ocupação da Amazônia e tem como principais fontes a revista Campo e uma entrevista da geográfa professora da UFRJ, Bertha Becker à revista Ciência Hoje.
I - O Estado brasileiro na ocupação da Amazônia: dos anos 50 ao fim da ditadura militar.
A ocupação amazônica pelo homem branco tem seu primeiro grande impulso entre 1880 e 1910, com a época de ouro da extração de borracha natural. Este período coincide com a Belle époque, marcado pelo progresso econômico, modernização das técnicas produtivas no território amazônico e também pelo crescimento dos problemas sociais nas cidades. Já neste primeiro momento as desigualdades e injustiças sociais serão uma característica da ocupação da Amazônia. O ciclo da borracha começa a ter seu fim quando o cientista Sir Henry Wickham contrabandeia sementes de seringueiras para as colônias do Ceilão e Malaia (atualmente Sri Lanka e Malásia), que rapidamente dominaram o mercado internacional. Com a crise de seu principal produto, a economia amazônica entra em crise e o processo de avanço do capitalismo sobre a floresta é momentaneamente interrompido.


A retomada da ocupação da Amazônia só ocorreu na década de cinquenta, confirmada as reservas de petroléo e manganês na região da floresta o governo Getúlio Vargas cria a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA). Três anos mais tarde é lançado pelo governo Juscelino Kubitschek o “plano emergêncial de desenvolvimento”, com três objetivos: criar um banco para facilitar o crédito, construir usinas termelétricas e iniciar um programa massivo de construção de estradas. As boas intenções desenvolvimentistas do programa não previram que com as novas estradas criavam-se vias de acesso para uma incontrolável migração, gerando conflitos e destruição.


Como já podemos constatar, a ocupação da Amazônia pelo homem branco foi sempre motivada por interesses econômicos, promovendo a inserção da floresta ao capitalismo mundializado. A ditadura militar só viria intensificar esta lógica, com seus slogans “Integrar para não entregar” e “Dar terra sem homens para homens sem terra” criam uma versão da história da floresta que esquece dois fatos fundamentais: a amazônia já estava integrada ao território nacional e já era ocupada pelos povos tradicionais da floresta, destacando-se os índios e seringueiros. O discurso dos militares legitimava um modelo de desenvolvimento autoritário de modernizaçao pelo alto da Amazônia, modelo este que perdura até hoje. O pretesto usado para a ocupação predatória foi o de protejer a floresta de ser invadida pelos EUA; o Hudson Institute de Nova Iorque tinha um plano de alagar a Amazônia com a construção de grandes lagos que permitissem às empresas estadunidenses ter acesso para explorar as reservas minerais da região.


Independe de ser verídico ou não o plano estadunidense ele foi o pulo do gato para que ditadura militar promovesse a inserção violenta e desregrada do modo de produção capitalista na floresta amazônica. Em 1966 é lançado pelo Estado brasileiro a Declaração da Amazônia, que dava aos empresários nacionais a maior responsabilidade em ocupar produtivamente o território da floresta. A este convite o ex-deputado Sérgio Cardoso respondeu que “Ao empresariado resta saber onde pode aplicar o seu dinheiro para ganhar mais dinheiro, pois essa é a maneira de atender a patriótica convocação para a ocupação brasileira da Amazônia” (Binka, p.60, grifo meu). O Estado legitimava a lógica destrutiva do mercado na ocupação econômica da floresta. Em 1967 o governo cria o Banco da Amanzônia e transforma a antiga SPVEA em SUDAM, com a intensão de estimular investimentos privados, mas acaba sendo um foco de corrupção e fracasso desenvolvimentista, estabelecendo uma política de insenção de impostos que fazia com que as empresas investissem na amazônia não com o objetivo de gerarem progresso para região, mas para abaterem seus dividendos junto a receita federal.


Quanto ao Estatuto da Terra, projeto de reforma agrária da ditadura militar, nos dizeres de Roberto Campos, “a lei era para ser aprovada, mas para ser colocada em prática". A ínfima reforma agrária que foi efetivada teve na Amazônia um de seus principais pólos, contudo o governo não assegura quase nenhum apoio técnico e de crédito para os assentados rurais, que encaravam situações precárias, muitas vezes vendendo seus lotes. O modelo priorizado pela ditadura militar foi o da grande propriedade, o governo sabia que as fronteiras agrícolas necessitavam de um grande influxo de capital e tecnologia para se desenvolverem, porém, os Planos Quinquenais da SUDAM serviram apenas para que o Estado financiasse grandes empresas e latifundiários em projetos que produziam apenas 15% do que deles se esperava. As obras megalomânas que o governo promovia na região, com o objetivo de se criar infra-estrutura energética e de transportes para a inserção do capital privado, como a transamazônica e grande carajás e tucuruí, pareciam estar mais preocupadas com a legitimação do Estado frente a sociedade – em concordância com a sua ideologia do “Brasil Grande” – do que em desenvolver sustentavelmente a região para o bem-estar de sua população.


O fracasso não era apenas produtivo, mas também social, a chegada da grande propriedade desestruturou os antigos modos de vida dos povos tradicionais da Amazônia, que encaravam a terra como um “dom de Deus, que devia ser habitada e trabalhada, mas não possuída” (Binka, p. 65). “A combinação do rico e cruel de um lado, e do pobre e desesperado, do outro, já foi e continua a ser altamente explosiva”(Binka, p.68). A partir deste momento até os dias presentes os conflitos sociais são uma constante na área da floresta. O Grupo Executivo para Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT), ligado ao Conselho de segurança nacional é criado em 1980 para controlar os conflitos na região. O Estado aparece mais como um mantenedor do status quo amazônico durante o regime militar, sua aparente ausência é na verdade uma conivência com o modelo de desenvolvento que estava em concordância com a distribuição de terra existente no Brasil, na qual 12% da pupulação possuem dois terços da terra, umas das situações mais desiguais do mundo. O Estado pouco fez para conter o processo de grilagem de terras, instrumento pelo qual os grandes fazendeiros privatizaram áreas públicas falsificando documentos. O poder público também reprimiu os abusos de poder que a UDR - organização de classe dos grandes proprietários– exerceu na região amazônica. Quando a UDR surgiu criando uma “rede de firmas de segurança privada que supervisionavam a eliminação de lideranças rurais problemáticas, de sindicalistas e ativistas membros da Igreja e de profissionais de Direito”(Binka, p.69). As grandes propriedades também servem de via para o tráfico de drogas e armas, além de serem o palco da moderna escravidão por dívida. Seja na função de oprimir ou de proteger a população “o papel do Estado está sendo exercido, conforme o caso, pelos militares, pelos latifundiários e pela Igreja”(Binka, p.69).

II - O fracasso desenvolvimentista e a moderna
escravidão por dívida na Amazônia


O modelo desenvolvimentista adotado pela ditadura militar foi um fracasso em termos ecológicos e sociais – como na maioria dos projetos adotados por este regime – mas além disso, na Amazônia também houve um fracasso do ponto de vista econômico. A ocupação da floresta não se mostrou rentosa para os grandes proprietários, como relata a fala de um deles, o fazendeiro Robert Milne, em 1980 : “O que é preciso entender é que ninguém está realmente ganhando dinheiro aqui e, se não fosse pelo governo e seus programas de distribuição de dinheiro, todo mundo estaria encrencado. Como eu disse, ninguém está ganhando dinheiro algum. É uma maneira de evitar de ter de pagar impostos, esperando que alguma coisa grande aconteça. Eu sou daqueles que acham que nada vai acontecer” (Binka, p.84). A ocupação da Amazônia por grandes capitalistas nacionais e internacionais provenientes de regiões urbanizadas, com poucos conhecimentos sobre a vida local não passava de um teatro, um simulacro para ganhar investimentos e insenções fiscais do governo; os grandes fazeideiros e empresários estavam pensando em seus negócios sim, mas não os que tinham na floresta, mas nos que possuiam em outras regiões do país. O melhor negócio que as terras da Amazônia podiam fornecer não era voltado para a produção, mas à expeculação imobiliária, um investimento de lucro a longo prazo autorizado pelo Estado, mas já desacreditado pelos menos otimistas, como Milne. O melhor exemplo talvez seja o da Volksvagem, dona de uma enorma fazendo na Amazônia, com o único próposito de abater seus impostos... das suas fábricas no ABC paulista e aumentar os lucros da empresa... com a venda de carros.


A estrutural corrupção também se presentifica nas relações entre o Capital e o Trabalho. Sem ter leis a que respeitar os grandes proprietários buscam tirar o máximo de mais-valia dos trabalhadores, desrespeitando os mais básicos direitos trabalhistas. A consequência comum deste processo é a escravidão por dívida; adiante tentarei descrever as relações sociais que estão por traz desta realidade tão degradante.


Na escravidão por dívida o escravocrata “não possui a pessoa, apenas a usa por quanto tempo precisar dela” (Binka, p.25). Os trabalhadores são seduzidos pelo contrato cativo, no qual ganham salários maiores com a obrigação de pagar todos os mantimentos que lhes forem fornecidos durante a empreitada na fazenda, dessa forma contraem a dívida. No contrato alternativo, o livre, os salários são menores, mas deles já se abate os gastos com a alimentação. Muitas vezes a escravidão não é exercida conscientemente. É comum que os fazendeiros e seus servidores vejam no trabalho coagido o único modo de disciplinar os “incivilizados peões” às regras do trabalho. Até que ponto esse discurso é sincero –enquanto visão de mundo de classe- e quando passa a ser uma racionalização, ou mesmo uma mentira calculada para justificar tal padrão, este sim, bárbaro, de trabalho, só uma análise sociológica e etnográfica mais profunda poderá revelar. Os próprios trabalhadores escravizados acabam naturalizando a opressão e iludidos (segundo o sentido do conceito de illusio, de Bourdieu) pelos seus tradicionais valores de honra e auto-estima, o escravo endividado “acredita firmimente que não pode ir embora enquanto não pagar a dívida” (p.25).


O duplo mecanismo do isolamento e da dívida facilitam a moderna escravidão na Amazônia. Forma-se uma “cultura de fronteira onde não existe lei” (p.30). Podemos pensar na ética o aventureiro, que segundo Sérgio Buarque de Holanda estavam nas bases das relações sociais da coloniação brasileira para descrever o processo de ocupação da Amazônia pelo capitalistas nacionais e internacionais. Aqui não importa construir um modelo produtivo regular, que sirva tanto para o presente como de base para a sociedade futura. O que importa é enriquecer ao máximo, o mais rapidamente quanto for possível, e com o gasto do mínimo de esforço; todos, inclusive os peões, pensam assim. Portanto, pensando sob esta lógica: para que investir em um moderno padrão de trabalho, perder dinheiro com gastos provenientes de direitos trabalhistas se os fazendeiros podem maximizar seus lucros (ou minimizar seus prejuízos) com a escravidão por dívida? Na selva amazônica a lei do homem branco é a do capitalismo selvagem, ganha o mais forte, os grandes fazendeiros. O frágil e complexo sistema de sinergia da Amazônia, que sustenta a maior reserva genética do mundo é violentada e posta em risco pela sanha da expansão descontralada das monoculturas e suas commodities.


Os personagens da rede social que envolve a escravidão por dívida formam uma complexa cadeia de relações na qual todos dependem uns dos outros. O fazendeiro “quer uma fonte de mão-de-obra temporária e barata para realizar um trabalho específico, desmatamento, plantio, manutenção de pastos (...), o máximo de mão-de-obra por um período específico” (Binka, p.25, grifo meu) – ou seja, sem investimento em capital constante, a maximização da produção se dá pelo capital variável, os trabalhadores de quem se extrai mais-valia. O fazendeiro precisa de um empreiteiro para agenciar os peões, este é o gato, que “verifica [se] a área esta bem definida, calcula quantos trabalhadores são necessários”(Binka, p.26), além dos equipamentos e mantimentos a serem usados. As vezes gatos mais poderosos agenciam “subgatos” para conseguir contratar centenas e até milhares de trabalhadores para uma grande empreitada. Os “supervisores” são os pistoleiros, uma espécie de vigias e inspetores armados da escravidão por dívida. Os peões são subdivdidos em: 1- peões moradores, naturais da região, “possuem algum tipo de rede familiar. Se desaparecerem, mais cedo ou mais tarde alguém vem procurar por eles”(p.26). 2- Os peões do trecho, vem de estados vizinhos do norte, nordeste e Minas Gerais, “se desaparem niguém vai sentir falta” (Binka, p.27). Estes trabalhadores passam por um processo de desterritorialização violento, desenraizados culturalmente de seu local de origem passam a enfrentar uma realidade social desconhecida e por isso são os que mais sofrem com os abusos dos gatos e fazendeiros.
Portanto, para conseguir o mínimo de produtividade necessário para manter a “faixada”, os “modernos” capitalistas se adaptam a dinâmica social da região amazônica, aliando-se aos mandões locais, os agimentadores do trabalho. Por isso, mesmo que seja uma cadeia de interdependências, o gato é a peça chave desta cadeia.


Voltanto a Sérgio Buarque de Holanda o personalismo é outra marca da cultura amazônica que perpassa a escravidão por dívida. Os contratos de trabalho são feitos verbalmente, com base na honra da confiança pessoal e na promessa, os trabalhadores são seduzidos pelos gatos com ofertas de farto emprego, trabalho honesto e ascensão social, para no fim acabarem escravizados. Os contratos legais de emprego e a regulamentação Estatal não passam de abstrações que não fazem parte do cotidiano da relações de trabalho na amazõnia. As relações entre os fazendeiros e peões é marcada pela violência e o paternalismo, duas faces faces da mesma moeda. A fala de Cícero, um dos gatos da região é muirto elucidativa: “É claro que a gente cuida dos empregados. Da mesma maneira que vocês cuidam do gado. Se a gente não cuida deles eles não produzem direito” (Binka, p.52). Este “cuidado” muitas vezes se exerce na forma de coação violenta para o trabalho, tratar os peões como “crianças indiciplinadas” é uma forma de justificar a necessidade da violência “paternal” de gatos e fazendeiros. Os peões são constatntemente acoados pelos fazendeiros e gatos, passando por espacamentos violentos e aplicações de técnicas de tortura. Em algumas fazendas são encontrados cemitérios clandestinos. Quando conseguem fugir os peões encontram dificuldades em conseguir proteção da polícia, conivente com os mandões locais, e acabam achando o refúgio fora da esfera do Estado, na Igreja.


Em torno da escravidão por dívida forma-se uma complexa cadeia humana, formada por peões, donos de pensão, prostitutas, fazendeiros (patrões), gatos e pistoleiros, “e cada um é dependente do outro” (Binka, p.46). A honra, baseada em costumes e acordos verbais, é o código de reciprocidade fundamental para o bom funcionamento deste sistema, pois "as oportunidades para traições em cada nível [da cadeia] são inúmeras. ...o xis da questão é que todos precisam de todos, e todo mundo tem que correr alguma forma de risco”. (Binka, p.47). “O gato terá muitos outros jogadores no seu time: capatazes, pistoleiros, o cantineiro, o cozinheiro, o enfermeiro, o caminhoneiro, o policial que se faz de cego quando uma carreta de peões passa pela sua barreira. O gato precisa estar “de bem” com a dona da pensão; é ela quem vai lhe providenciar peões; mas ela precisa que ele os leve, pagando a conta. O peão se refugia nos braços da prostituta, em troca de um dinheirinho. Ele precisa do gato na mesma medida em que o gato precisa dele. Depois de tudo o peão tem que comer. (...) O patrão precisa realizar a tarefa, mas deixa essa execussão para o gato. O gato precisa realizar a tarefa, mas não pode fazer nada sem sua equipe de apoio. O patrão pode tapear o gato mudando o preço no meio do serviço. Ele pode não pagar nada, deixando o gato com as contas salgadas dos mantimentos e do pagamento dos trabalhadores. Da mesma maneira, o gato pode levar o dinehiro o patrão e desaparecer sem fazer o trabalho, ou pode fazer mas não pagar os peões. Ou pode pegar os peões da dona da pensão e não pagar a conta para ela. Por sua vez, ela pode obrar acima do preço dos peões que frequentam seu estabelecimento. / Até mesmo o peão não é totalmente indefeso. Ele pode pegar um adiantamento e fugir ou pode fazer um trabalho malfeito e deixar o gato em má situação. Ou pode enganar a dona da pensão e fugir sem pagar a conta, ou enganar a prostituta, ou mesmo ser enganado por ela, que pode roubar seu dinheiro quando ele estiver bêbado” (Binka, p.46). É o dinheiro por tanto o elemento social individualizador, que pode corromper está complexa rede de reciprossidades.


Mas se nesta cadeia todos dependem de todos, as relações de poder nelas presente são assimétricas. Se “o sistema de poder na sociedade brasileira está baseado em uma rede complexa de favores e lealdades” (Binka, p.76), certo está que quem tem mais poder terá mais dívidas de favores a lhes serem retribuídas. Está noção de “dívida de favor” sustenta ideologicamente - via a tradicional crença na honra, ainda presente em parcelas da sociedade brasileira semi-paternalista - a escravidão por dívida; oculta e naturaliza tanto para a sociedade civil –inclusive os peões endividados- quanto para o poder público –em especial a Justiça e a polícia- a superexploração que sofrem os escravos por dívida e somente em situações de violência extrema está dominação começa a aperecer como algo absurdo, em especial para os peões que sofrem com espacamentos, perseguiçoes e mesmo a morte.

III - Os projetos alternativos: da ecologia do desenvolvimento ao desenvolvimentismo ecológico

Contra o projeto desenvolvimentista predatório estabelecido pela ditadura militar e as mazelas sociais e ecológicas dele provenientes surgiram projetos alternativos de diferentes grupos e classes sociais; vamos destacar aqui três importantes portadores de uma esperança de transformação positiva para a região da amazônia brasileira, que cada um, ao seu modo específico, mas dialogando entre si, pensaram e sentiram como o funciona a dinâmica social do desenvolvimentismo predatório, buscando mudar suas estruturas sociais danosas e possibilitar um desenvolvimento sustentável para a floresta e sua população. Estes agentes da mudança são a Igreja, os seringueiros e os intelectuais.


A Igreja católica cria em 1975, sobre influência da Teologia da Libertação, a Comissão Pastoral da Terra, que “tem por missão ajudar a população rural a conseguir acesso à terra, titulação, assistência técnica, relações trabalhistas regulares, e dar-lhe apoio legal” (Binka, p.24). Na ausência da ação reguladora do poder público, cabe muitas vezes à Igreja o papel de combater a escravidão por dívida na amazônia e lutar em defesa dos direitos humanos mais básicos. Por tomar uma posição de apoio às lutas dos trabalhadores rurais e da reforma agrária, membros da Igreja, mesmo com todo poder e tradição de sua instituição, também são alvos de represálias de capangas dos fazendeiros locais.


O caso mais recente foi o da missionária Dorothy Stang, morta no interior do Pará, em 12 fevereiro de 2005, aos 73 anos. Defensora assídua de um modelo de desenvolvimento sustentável, irmã Dorothy já havia recebido diversas ameaças de morte, mas seguia firme com afirmações como: “não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade, sem devastar”.


O movimento dos seringueiros ganha importância na década de setenta e durante os anos oitenta. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, no Acre foi a sua instituição mais conhecida, e Chico Mendes, um dos fundadores e presidentes deste sindicato, seu maior expoente. Os seringueiros de Xapuri tiveram idéias originais para as formas de lutas sociais e ecológicas que respondiam os anseios não apenas de sua classe, mas de diversos setores das populações tradicionais da floresta: índios, seringueiros, castanheiros, ribeirinhos e extrrativistas vegetais em geral. Contrapondo-se à forma de trabalho cativo a que estavm submetidos, desenvolveram um modelo de reforma agrária baseado nas reservas extrativistas: uma área de propriedade coletiva dos povos da floresta, onde o compromisso com a preservação ambiental está associado com o desenvolvimento econômico e social com base na coleta extrativista dos diversos bens naturais da floresta. Desse modo, ao mesmo tempo em que se resolveriam os conflitos pela posse da terra na Amazônia, instalariam-se formas de modernas relações de trabalho na região. O empate foi a forma de luta pacífica que os seringueiros desenvolveram para defender as suas causas. No empate os seringueiros e suas famílias ficam em frente aos tratores, na área que seria desmatada por ordem dos fazendeiros, até que estes desistam, garantindo então a preservação do terreno. Estes trabalhadores sabem que os conflitos de classe estão no centro de suas lutas. Júlio Barbosa de Aquino, primeiro a substituir Chico Mendes no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri dizia no final da década de oitenta: “Por que o Chico foi o primeiro ecologista a ser morto nesse país? Porque Chico era, antes de mais nada, um líder sindical que lutava pela posse da terra e esse é o principal problema do Brasil. Se você falar só de ecologia, tudo bem, as pessoas te ouvem e te aplaudem. Mas se você defender também a pose da terra, mesmo que seja para preservar a floresta, a coisa muda de figura”.


Os números da CPT confirmam a afirmação de Júlio, de 1985 a 2006, registraram-se 1.104 ocorrências de conflitos com assassinato. Nestes conflitos morreram 1.464 trabalhadores. Destas ocorrências somente 85 foram levadas a julgamento. Foram condenados 71 executores e somente 19 mandantes. Mesmo com o fortalecimento da luta dos trabalhadores rurais e a importância política que atingiram movimentos como o MST, a impunidade no campo e a transigência do Estado com os grandes propritários continuam sendo uma realidade no Brasil contemporâneo. (Os dados recentes da violência no campo se acham em: http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=3336).


Os conflitos sociais e ecológicos na amazônia tamém tornaram-se preocupação para intelectuais dos centros urbanos. Bertha Becker, professora e pesquisadora da UFRJ, é reconhecida mundialmente pelos seus estudos e propostas de desenvolvimento sustentável. Para ela o ambientalismo preservacionista deve ser superado, pois não conseguiu barrar a expensão da agropecuária capitalizada e não consegue por si gerar as demandas de melhores (e mais modernas) condições de vida, que começam a ser exigidas pelas populações amazônicas. Para a criação de um modelo de desenvolvimentismo ecológico são essenciais um aprimoramento da ciência e da tecnogia, que permitam atribuição de maior valor para os bens naturais da floresta, de modo que eles consigam competir economicante com as commodities. A extração das riquezas naturais da amozônia devem ser integradas a cadeias tecnoprodutivas, estas por sua vez integradas a produção industrial não predatória (de remédios, cosméticos e borracha, por exemplo). Para aumentar a produtividade, a reforma agrária deve trocar o modelo tradicional proposto pelo Incra e adotar as vilas agroindustriais cooperativadas (ou fazendas solidárias). Neste modelo deve-se pensar em uma logística do pequeno que viabilize a produção familiar; estabeleceria-se uma densidade mínima necessária a produção; a aglomeração dos trabalhadores e suas famílias permitiria uma melhor implantação dos serviços de saúde, educação, informação e modos de agregar valor aos produtos; falicitaria-se o apoio governamental, pois se acabaria com o isolamentos dos assentamentos tradicionais; seriam organizadas cooperativas para melhor acesso ao mercado; e por fim supenderiam-se os títulos de propriedade, sendo liberadas apenas conseções de uso da terra. Essas medidas permitiriam uma maior regionalização das ações, com o fortalecimento tanto da ação autônoma da sociedade civil, quanto da ação estatal, que estaria mais organizada pera estabelecerr parcerias público-privadas, junto capital nacional ,eficazes para a população e não apenas para os empresários licenciados.


O projeto de Bertha Becker ainda é uma utopia, mas uma utopia com plenas condições técnicas e sociais de se concretizarem. O dilema desta via é o mesmo da luta dos seringeiros e missionários da CPT, é muito bonita no papel, mas ao questionar a organização da propriedade da terra acaba ganhando a oposição dos poderos ruralistas ligados à produção de commodities e à expeculação imobiliária. Portanto, a implantação de projetos alternativos para a amazônia passa necessariamente pela luta de classes. Somente numa conjuntura social em que as classes e grupos sociais que reivindicam um projeto de desenvolvimento alternativo para a amozônia, por meio de suas lutas cotidianas e revindicações políticas conseguirem obter hegemonia junto à opinião pública e ao poder estatal, somente aí serão capazes de superar trasigência do poder público e a sólida organização do agronegócio, ambos associados entre si e mantenedores da devastação social e ecológica do status quo amazônico.


Como disse Júlio Barbosa, há quase vinte anos atrás, “as idéias e propostas do Chico vão continuar”. E não apenas continuam como se aprimoram, pois não apenas as idéias e propostas de Chico Mendes ainda se fazem necessárias, mas de todos trabalhadores e missionários que estão na amazônia, como de todos trabalhadores e intelectuais, seja do norte ou sul, do Brasil ou do mundo. As implicações ecológicas da organização social da exploração da amazônia não cabem apenas aos residentes daquela região, ainda naturalmente exuberante, mas a todos que se preocupam com o bem estar da vida humana na terra pelos próximos séculos. Ainda é possível que os humanos apreendam coletivamente que a maior saciedade da maior de suas ganâncias financeiras, não fará com que a mercadoria e todos os lucros por ela proporcionados se transformem em substância alimentícia ou respirável, isto não fará o melhor dos químicos. Igualmente difícil será transformar um novo deserto na maior floresta do planeta terra, que lá já esteve um dia, mas que sua paisagem futura nos fará difícil a lembrança.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Ressalvas - A esquerda brasileira e o combate à corrupção


Certos setores da esquerda estão dando pouca importância à conivência que o governo Lula vem tendo com a corrupção no Congresso Nacional. Sem cair em um legalismo pueril, ressalvas são fundamentais caso a esquerda consiga, um dia, realizar um projeto sólido, democrático e popular para o Estado brasileiro. Seguem alguns apontamentos sobre o caso da absolvisão de Renan, mas que também servem para outros casos:


[1]Tomem cuidado quando falarem que a corrupção é estrutural ao capitalismo e que temos coisas mais importantes para nos preocupar agora do que a absolvição de Renan. As duas afirmações não deixam de ser verdadeiras, mas apenas em parte...


[2]A corrupção de modo algum é exclusiva ao capitalismo, ela se origina na privitivatização de interesses que deveriam priorizar o coletivo, no caso, os valores abstratos do Estado e sua concepção de "honra burocrática". No Brasil a racionalidade e a impessoalidade estatais são historicamente dificultadas pelo familismo, o personalismo e o patrimonialismo, bem mais do que em países do Norte, são essas - associadas ou não ao Capital - as grandes fontes de corrupção entre nós.


[3]Temos coisas muito mais importantes a fazer, mas isso não quer dizer que combater à corrupção não seja também muito importante. Mesmo que simbolicamente - considerando-se que outro corrupto entrasse no lugar de Renan - a exclusão do chefe da assembléia dos senadores seria muito valiosa, e isso Freud e Gramsci explicam.


Ou alguém acha que a democracia não saiu derrotada?


[4]Derrotar politicamente a elite brasileira e seus vícios também passará por superar a transigência com que se trata a corrupçao no país. Se não se faz isso de um ano para o outro, é bom que se comece o quanto antes...
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[5]Últimas questões:
A quem serve a corrupção do Estado brasileiro?Como essa corrupção pode existir com tamanha transigência do povo? Nossa corrupção à brasileira - descarada e escrachada - pode ser encarada como estando diretamente ligada à luta de classes (ou melhor, à ecassez de ação coletiva classista) em nosso país.
[6]Portanto, o combate à corrupção deve ser um dos pontos fundamentais no programa dos partidos e frentes de esquerda brasileiros, pois é pré-condição para que uma agenda política socialista e democrática possa ser minimamente efetivada no congresso. Esta reivindicação, que pauta-se em um conhecimento realista sobre os vícios de funcionamento do Estado brasileiro, não pode mais ser confudida pela militância distraída com um cansado "moralismo udenista", anacrônico e oportunista, que até hoje ronda insistente pelo Brasil.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Pequena Miss Sunshine e a negação da metamorfose

Um filme divertido, apesar de tudo. Para Sérgio Ripardo o humor vence o medo em Pequena Miss Sunshine. Em meio à sociedade americana que prega os ganhos materiais como única via para o sucesso individual, os Hoover, uma típica família estadunidense - típica porque esquisita, diga-se - gasta suas últimas poupanças na busca da realização do sonho da caçula, a original Olive, selecionada para participar de um concurso de Miss Mirim, na Califórnia.

Tentarei aqui mostrar semelhanças e rupturas entre o filme e a novela de Franz Kafka, A Metamorfose, que aborda uma decadente família burguesa na Alemanha do início do século XX. Nesta, com os negócios do pai falidos, Gregor Samsa passa a viver para sustentar sua família trabalhando de caixeiro-viajante. Mesmo conseguindo os sustentos da casa, seu pai é sempre ríspido com o jovem Gregor, querendo manter-se, burguesamente, como o chefe da família. Contra a agressividade do pai, a suavidade da mãe de Gregor, uma frágil asmática, busca amenizar a situação. A irmã de Gregor é seu maior xodó, e como compensação a seu fracasso com as mulheres, chega a sentir por ela desejos incestuosos.

Certo dia Gregor acorda metamorfoseado em um cascudo inseto com incontáveis perninhas. Amendrontado com seu novo fenótipo, o jovem magoa-se com o desespero e a repulsa da mãe e da irmã e do desprezo do pai. Sua família não compreende sua nova voz de inseto, mas o jovem atordoado ainda é capaz de entender a linguagem humana. O metamorfoseado vive a angústia de entender um mundo que já não o compreende mais, e por isso perde as esperanças na vida. Passa a viver trancafiado no quarto, sendo um fardo para a família, que busca poupá-lo da exposição a uma sociedade preconceituosa e intolerante, que certamente não compreenderia a situação. A metamorfose de Grego Samsa cria uma couraça em seu ser aflito ante os sofrimentos e opções da existência moderna. Para Theodor Adorno "Os protocolos herméticos de Kafka contêm a gênese social da esquizofrenia", e para Lukács a obra kafkatiana representa a decadência tardia da sociedade burguesa.

Gregor Samsa é um indivíduo que tem sua existência esfacelada por não consegue resistir às pressões da vida social moderna. Sua história é um retrato da derrota da liberdade e do pluralismo sócio-cultural no capitalismo monopolista do século XX. A vitória da moral burguesa, e dos padrões sociais exigidos pelo mercado.

Pequena Miss Sunshine também retrata uma família de desfavorecidos no mercado capitalista. Todos na família são a personificação dos "fracassados" no american way of life, membros de uma parcela da classe média que tornou-se incapaz de realizar seus ideais. O patriarca, Richard (Greg Kinnear), complexado pelos valores estadunidenses, dá palestras de auto-ajuda, e apesar de desenvolver seus "Nove passos para o sucesso" não é ele mesmo um exemplo exitoso de vendas. Seu pai (Alan Arkin) é um velho viciado em heroína. A mãe Sheryl (Toni Collette), busca amenizar as obsessões burguesas de Richard, principalmente as pressões exercidas para que os filhos não tornem-se "losers". O casamento dos dois também não reflete o ideal de estabilidade e romantismo da ideologia Yankee. Steve Carel (o mesmo de Virgem de 40 anos) é Frank, o professor homossexual especializado em Proust (que se auto-intitula o melhor em Proust nos EUA). Ele tenta suicídio após se separar de seu namorado, que o trocara por outro especialista em Proust, e este passa a ser reconhecido na academia como o melhor pensador sobre o literato francês nos EUA. Após esse fatídico episódio passa a receber auxílio da família Hoover. O filho mais velho é um niilista fã de Nietzsche que "odeia todo mundo". Ele tem verdadeiro asco dos produtos plastificados da indústria cultural, do discurso robotizante self-help de seu pai, enfim é um peixe fora d´água no mundo mercantilizado dos EUA. Por fim a caçula ingênua e autêntica Olive (Abigal Breslin). É ela a principal personagem na negação da metamorfose operada em Pequena Miss Sunshine.

Olive promove a recusa de ser igual a todos numa sociedade de massas que padroniza os indivíduos desde a mais tenra infância. E considerando-se que ela promove essa ruptura no interior do universo totalitário da moda, podemos considerá-la uma jovem revolucionária, uma inovadora nos padrões estéticos e éticos. Uma dupla ruptura com os ditames da indústria cultural. Esteticamente Olive rompe com o ícone pop de beleza jovem. Enquanto as outras modelos mirins plastificam-se em Barbies de carne e osso, nossa pequena miss sunshine mantem-se peculiar e espontânea, além de ser ligeiramente gordinha. Eticamente ela é um fracasso na sociedade do espetáculo. O pressuposto dessa é a cartilha do entretenimento profissional baseado na razão instrumental. Uma arte de distrair consumida como diversão conformada. Sua performance artística no concurso de Miss mirin promove o estardalhaço entre o público conservador de papais, mamães e vovós ao levar o sexo - mesmo sem saber! - ao universo infantil em uma dancinha nada puritana! A própria inocência de Olive é uma crítica escrachadamente irônica à banalização do sexo.

E é neste momento que se confirma a negação da metamorfose, operada em conjunto pela excêntrica família Hoover. Ao perceber a reação hostil da platéia, os Hoovers levantam-se de suas cadeiras e passam a cantar e incentivar a jovem Olive - que parece ser a única a não dar a mínima bola para a opinião pública. Richard chega a agredir fisicamente um organizador do concurso que tentara expulsar sua filha do palco. A inocência de Olive é o combustível para ignorar a violência do império moral da maioria e traz com ela, a reboque, o apoio contestador de sua família. Tal contraste faz o público se identificar com a causa dos Hoovers.Como resultado temos um elogio aos losers, os desprestigiados no mercado capitalista, a minoria oprimida pelo império moral da maioria na democracia de mercado estadunidense. Com sua simplicidade infantil a Pequena Miss Sunshine nos mostra como indivíduos que não "vendem bem seu peixe" - não são aceitas como boas mercadorias no mercado de trabalho - podem ser pessoas muito mais realizadas e interessantes, com muito mais conteúdo humano, do que os que seguem mecanicamente os padrões mercadológicos. Então a negatividade dos losers em seu significado na cultura capitalista é suprassumida dialeticamente ao considerar-se a possibilidade da maior riqueza do conteúdo humano na fuga dos modelos mecânicos do mercado. É desconstruído o mito dos derrotados e dos fracassados e denunciado os mecanismos sociais autoritários de controle social que levam à sua crença. A sociedade de consumo necessita de indivíduos padronizados, que participem compulsivamente dos processos de reprodução da economia capitalista: a produção como trabalho alienado e o consumo como lazer reificante. O pressuposto para o sucesso desse estilo de vida é aniquilação do "homem político", a despolitização coletiva.

Ao fim Olive é proibida de voltar a participar de concursos - de qualquer tipo que seja! - no estado da Califórnia. Uma punição por ser diferente. Mas a jovem não muda em nada seu modo de ser por causa diso.

Filmes como Pequena Miss Sunshine promovem a repolitização do cotidiano ao desconstruírem os mecanismo de controle social estabelecidos. Abrem espaço para liberdade individual e coletiva na autoritária democracia de massas em que vivemos. Contudo, esse projeto libertário só pode concretizar-se se filmes como esse forem produzidos periodicamente. Isso porque os mecanismos de controle social do capitalismo têm o poder de ressignificar conteúdos políticos, adequando-os à sociedade de mercado. O maior exemplo contemporâneo deste processo acontece com a figura de Che Guevara: de revolucionário comunista ele é ressignificado em comportado símbolo de "rebeldia", luta por justiça social que só poderia ser realizada nos padrões atuais do social-liberalismo. Desse modo, pôsteres do "Che Pop" passam a aparecer na parede do quarto de personagens "boa pinta" das novelas da Globo. Cria-se um novo padrão, sufoca-se a liberdade. A justiça social transforma-se em eterna promessa ideológica.

Por isso é preciso estender a idéia de desconstrução cultural para todos os ramos da arte: filmes, pinturas, músicas, teatro, literatura. Desconstruir tanto as padronizações mercadológicas quantos as ressignificações capitalistas. Descontrolar os mecanismos de controle social das democracias de mercado massificadas. Um movimento artístico em torno dessas idéias poderia estimular uma verdadeira revolução cultural rumo a uma humanidade mais livre, mais inteligente e verdadeiramente democrática.

O pessimismo com o atual estágio da vida era o pressuposto da esperança militante dos filósofos da Escola de Frankfurt, a certeza de que é possível construir, desde hoje, um mundo melhor. Termino com um pensamento de Adorno, que serve como ilustração da mensagem artística que identifiquei em Pequena Miss Sunshine, a qual proponho (e torço) que se expanda, e se renove, constantemente:
"...O que seria a felicidade que não se medisse pela incomensurável tristeza com o que existe ? Pois o curso do mundo está transtornado. Quem por precaução a ele se adapta, torna-se por isso mesmo um participante da loucura, enquanto só o excêntrico conseguiria agüentar firme e oferecer resistência à absurdidade. Só ele seria capaz de refletir sobre o ilusório do desastre, a ´irrealidade do desespero´, e de se conscientizar não só de que ele ainda vive, mas de que ainda há vida" (Mínima Moralia [§ 128]).

Música incidental:http://paulinho-da-viola.letras.terra.com.br/letras/486092/

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Hot Califórnia de Banana - Outra globalização é possível


Na sexta do dia 26 fui jogar uma sinuquinha com a rapeize. Como perto dela tem um retaurante japa, fomos nós rachar um yaksoba, afinal, sinuca cansa a vera, e a gente tinha que tá bem nutrido. Até aí era um dia normal, mas eis que quando já acabavámos o ksobão o gerente do lugar resolve nos presentear com as "sobras" do rodízio. E maluco, que sobras!! Hot Caifórinia de salmon, rolinho primavera de banana e de camarão, e o melhor da noite, Hot Califórnia de Banana com calda de chocolate (muito melhor que esse sushi da foto de cima) !! Nem precisa dizer que só faltou nós chamarmos o gerente pra jogar sinuca com a gente!!
Pensamentos toscos do dia: Sushi do Japão, Cream Cheese e fritura dos EUA, Chocolate da Europa e banana do Brasil, e melhor, tudo isso de gratís!! PQP, isso sim é globalização que vale a pena!!! Aí garçom, manda mais AÊ!!!!

PS: Como esse brog se pretende sério pra kct, posto abaixo pensamentos do grande Milton Santos, que com seus pensamentos contribuiu em muito para se pensar em outra globalização, mais justa e plural, oposta a do pensamento único neoliberal:

"(...)As culturas nacionais desabrocham como reflexo do que se convencionou chamar de gênio de um povo, expresso pela língua nacional, que é também uma espécie de filtro, veículo das experiências coletivas passadas e também forma de interpretar o presente e vislumbrar o futuro. É verdade que na sociedade babelizada que é a nossa, as contaminações de umas culturas pelas outras tornaram-se possível industrialmente, dando lugar a uma mais forte influência daquelas tornadas hegemônicas sobre as demais, que assim são modificadas. É por isso que toda controvérsia sobre o assunto deve ser atualizada e, para ser consequente, tem de ser começada e terminada com a difícil, mas escorregadia, discussão sobre a indústria cultural: o que é, como se dão seus efeitos perversos em termos de lugar e de tempo. Sem isso o debate pode se dar hoje, mas é como se ainda estivéssemos vivendo em outro século e em outro planeta.Sem essa precaução, corremos o risco de colocar no mesmo saco as diversas manifestações ditas culturais e de avaliar com a mesma medida os seus intérpretes.
Condições particulares
O Brasil, pelas suas condições particulares desde meados do século 20, é um dos países onde essa famosa indústria cultural deitou raízes mais fundas e por isso mesmo é um daqueles onde ela, já solidamente instalada e agindo em lugar da cultura nacional, vem produzindo estragos de monta. Tudo, ou quase, tornou-se objeto de manipulação bem azeitada, embora nem sempre bem-sucedida. O Brasil sempre ofereceu, a si mesmo e ao mundo, as expressões de sua cultura profunda através do talento dos seus pintores e músicos e poetas, como de seus arquitetos e escritores, mas também dos seus homens de ciência, na medicina, nas engenharias, no direito, nas ciências sociais.
Hoje, a indústria cultural aciona estímulos e holofotes deliberadamente vesgos e é preciso uma pesquisa acurada para descobrir que o mundo cultural não é apenas formado por produtores e atores que vendem bem no mercado. Ora, este se auto-sustenta cada vez mais artificialmente mantido, engendrando gênios onde há medíocres (embora também haja gênios) e direcionando o trabalho criativo para direções que não são sempre as mais desejáveis. Por estar umbilicalmente ligada ao mercado, a indústria cultural tende, em nossos dias, a ser cada vez menos local, regional, nacional. (...)"

Da Cultura à Indústria cultural: http://br.geocities.com/madsonpardo/ms/folha/msf10.htm

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

A Família de Marx


Marx pai de família - Socialismo e política de vida

Para obter dados referentes à vida pessoal de Marx recorri principalmente ao texto de Leandro Konder, "Marx e o Amor", presente no livro "Por que Marx" -uma coletânea de textos de intelectuais brasileiros sobre a atualidade de Marx e do marxismo - no contexto da redemocratização - publicada em 1982, em homenagem ao centenário da morte do velho e bom Marx (até o pulha traíra do FHC escreve nele...). O exemplo pessoal da vida de Marx servirá de fonte para o teste de duas hipóteses neste curto texto: 1- é impossível uma politização total da vida, ou seja, uma vida completamente livre de contradições, erros e infelicidades; 2- É possível uma politização parcial da subjetividade que leve aos engajados uma vida mais plena do que a oferecida pela sociedade capitalista. Em um curto artigo intitulado "Marx e o Amor", Leandro Konder descreve a vida pessoal de Marx como tão agitada quanto sua vida pública. De seus seis filhos, dois morreram precocemente, Guido e Francisca. Laura e Eleanor se suicidaram quando adultas. A primogênita ganhou o nome da mãe, Jenny, o grande amor de Marx, fonte de inspiração para cartas apaixonadas. Jenny era filha do Barão Ludwig von Westphalen, importante membro da burocracia prussiana, que a princípio foi contra sua união com Marx, mas por ser um liberal, cedeu. Já Friedrich Demuth, filho de Marx com a criada de Jenny, Helene Demuth, foi assumido por Engels, para limpar a barra do fiel companheiro comunista. Eleanor chegou a descobrir a verdadeira história anos mais tarde. Marx parecia de fato amar Jenny, sua parceira morre em 2 de dezembro de 1881 e o autor de O Capital, arrasado, passa a declinar progressivamente, vindo a falecer 1º de março de 1882.

A história privada da vida de Marx denuncia as tensões existentes entre o engajamento público do militante comunista e o descuido do pai de família. Marx viveu em uma época de pouca socialização da política, nela as vanguardas tinham um papel crucial para a construção do socialismo, que seria construído segundo o modelo blanquista do golpe de estado. Tal projeto exigia completa entrega dos vanguardistas à causa revolucionária. Como contrapartida da superpolitização da vida pública, tinha-se o descaso com a vida privada, o suicídio de duas filhas, um filho renegado e a constante distância de seu amor, Jenny, exigidos pelos compromissos militantes. O fato de ter-se casado com a filha de um aristocrata também evidencia a impossibilidade de politização total da vida privada. Afinal, se fosse seguir sua ideologia pública Marx deveria ter escolhido uma proletária..., mas sua energia amorosa instintivamente deslocou-se para uma “filha da elite” (não custa lembrar que o autor de O Capital veio de uma família pequeno burguesa, tendo gostos de classe oscilantes entre os hábitos da elite e do proletariado).

Hoje vivemos em outros tempos. A luta do proletariado possibilitou uma maior socialização da política, mesmo dentro do capitalismo. A relativa massificação da democracia permite um menor engajamento de militantes socialistas à causa pública de sua ideologia. O golpe de estado blanquista pelo partido revolucionário dá espaço à nova concepção gramsciana de disputa pela hegemonia proletária entre os diversos grupos sociais da plural sociedade civil moderna. Nesta nova realidade surgem as condições de possibilidades para uma maior dedicação à politização da vida privada entre os socialistas - e também fora do âmbito do socialismo - , sendo o feminismo a maior expressão desse movimento. Portanto a concepção atual de política de vida passa a levar em conta tanto os aspectos da esfera pública quanto da esfera privada. Neste curto texto quero enfatizar a importância desta segunda, pois penso que a esquerda vem respondendo ao pragmatismo neoliberal com um pragmatismo economicista, furtando-se de fazer a crítica aos valores da sociedade de consumo. Para tanto recorrerei a seguir ao pensamento de Marx e de alguns marxistas sobre o amor.

No texto citado Konder aborda a breve teoria de Marx sobre o Amor, contida nos Manuscritos de 1844 . O amor seria uma troca recíproca entre humanos que os permitiriam relacionar-se de modo pleno com o mundo, "como homem total". A alienação impediria que as relações humanas de trocas fossem recíprocas, inclusive o amor, sempre fazendo com que o dominante dê menos do que recebe e o alienado receba menos do que dá (podem ser pensadas a partir daí as questões do machismo, da homofobia e da dominação de classe). O "poder alienado da humanidade" "transforma a fidelidade em infidelidade, o amor em ódio, o ódio em amor, a virtude em vício, o vício em virtude". "No lugar de todos os sentidos físicos e intelectuais, aparece a simples alienação de todos esses sentidos, isto é, o sentido do ter ". O capitalismo tornaria o problema mais agudo, pois intensificaria e massificaria a alienação, tornando hegemônica a forma perceptiva do "ter".

Entre os pensadores marxistas que repensarem a questão do amor estão Marcuse e Erich Fromm. O primeiro, em Eros e a Civilização afirma que é impossível que exista amor pleno no capitalismo, nele a verdadeira libertação sexual (e amorosa) é trocada (e vulgarizada) pelo surgimento e expansão da indústria pornográfica.Já Fromm, mesmo considerando todos os entraves do capitalismo, acha que o indivíduo pode transcender as limitações mundanas, aprendendo a Arte de Amar, tão banalizada na sociedade capitalista.A terceira geração da Escola de Frankfurt faz uma crítica do "mercado do sexo e do amor": motéis, fantasias amorosas, orgasmos, hotéis "românticos" são oferecidos no mercado de serviços para todos os gostos de consumidores, fortalecendo o sentido do "ter", criticado por Marx. Em seu escrito "Do ter ao ser", Fromm mostra sua filosofia prática para fugir ao totalitarismo de mercado imposto sobre a subjetividade humana na sociedade capitalista. Há quem acredite que o amor romântico, que transcende o sentido do ter, buscando "algo maior" é uma das últimas frentes da liberdade humana ante a lógica consumista do mercado capitalista.


Enfim, como já diria (e faria) o bom Marx, é preciso viver o que se pensa! Nossa geração, e provavelmente as próximas, vão viver a dialética entre "não ser de ninguém e estar na pista pra negócio" - a lógica amorosa capitalista bem denunciada no aspecto espontâneo do funk - e buscar a plenitude humana em relações afetivas mais profundas, fonte de descobertas e trocas recíprocas entre parceiros - o amor que permite sermos homens e mulheres totais, independente de suas opções sexuais.E como sabidamente é impossível uma politização total da vida, pois "não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência", que não apareçam os puristas do amor, sejam fanáticos religiosos ou mimados pequenos burgueses. O amor contemporâneo nunca será o do ideal romântico, mas sempre algo fluído, instável, chama que precisa de constante renovação, carinho e atenção para que a felicidade seja recíproca e infinita enquanto dure. A reciprocidade mais ou menos simétrica é a conquista do caráter coletivo do casal, superando o individualismo consumista do “mercado do amor e do sexo” da sociedade de consumo.

Esse debate não teve intenção apenas teórica. Quis aqui lançar mão de questões práticas, que possam servir como fonte de reflexão para políticas de vida anti-capitalistas, sem dogmatismos e pretensões moralistas ou totalizantes.Entre nós, socialistas, costuma-se muito pensar que a vida não é fácil, que a luta não é moleza, que a transformação social não será feita com rosas. Concordo com tudo isso. Só acho que ser socialista não é apenas lutar contra as mazelas do capitalismo, mas buscar ser um tipo de ser humano mais completo, livre, solidário e por que não, amoroso. Para tanto é preciso reinventar nosso cotidiano bombardeado por futilidades, lixo mercadológico capitalista. Temos a “humilde” tarefa de reconstruir a felicidade da vida humana, em um estágio do capitalismo marcado pela depressão psíquica. Para não dizerem que eu estou viajando, termino lembrando as sábias palavras do grande Che Guevara: "Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres. O esqueleto da nossa liberdade completa está formado, falta a substância protéica e a roupagem; criá-los-emos”.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

liberdade, liberdade


experimental

Bem, acado de fazer esse troço com sono e cansado, sem a mínima criatividade. Como aqui só quero idéias que fluam livres como o vento, não vou deixá-las presas a indisposição de fim de noite. Amanhã começa a ventania!!

PS: Agradeço a Carol pela dica de como fazer um blog (mas não pelos nomes toscos que sugeriu para esse espaço!!).

A sanha do sonho é a brisa do sono