quinta-feira, 25 de março de 2010

Bauman e Bosch entre o céu o inferno



"Quando todos os seres humanos se livrarem de Deus e da eternidade (como deverá acontecer, com a lógica impiedosa sucessivas camadas geológicas) o homem irá se concentrar em "obter da vida tudo que ela poder dar, em nome da felicidade e da alegria, mas apenas neste mundo, aqui e agora" (Dostoiévski, Os Irmão Karamazov). Então os seres humanos se tornaram eles próprios "como deuses", imbuídos do espírito e da "titânica presunção" divinos. O conhecimento de que a vida não passa de um instante fugido, de que não há uma segunda chance, mudará a natureza do amor. O amor não terá um tempo para habitar. O que ele perder em duração vai ganhar em intensidade. Vai arder mais, de modo mais fascinante do que nunca, consciente de que está destinado a ser vivido e usado num único momento e até o fim, em vez de se espalhar de maneira tênue e insípida, como antes, pela eternidade e pela vida imortal da alma..."
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"Talvez haja um paraíso de amor apaixonado à espera no fim do caminho que conduz à sabedoria da razão. Mas percorrer esse caminho pode levar milênios. Enquanto isso, ao trilhá-lo, quilômetro por quilômetro - o inferno. Será que o inferno pode ser o caminho para o paraíso? E será que o paraíso vale milênios no inferno?" (Bauman, Vidas Desperdiçadas).












sábado, 20 de março de 2010

Solidariedade e Razão Pública - os equívocos da Emenda Ibsen




Sou carioca, mas acho que conseguirei ser relativamente imparcial no tema que vou abordar.

A proporção das verbas que o Rio recebe hoje é muito alta (75% dos royalties descentralizados) e pode, gradativamente, ser reduzida. Se o dinheiro dos royalties for cortado sem planejamento levará o estado e vários municípios do Rio, inclusive a capital, à falência, paralisando diversos projetos sociais e investimentos públicos. O Rio precisa se re-industrializar, tornar sua economia mais dinâmica - como está fazendo o Espírito Santo -,hoje somos muito dependentes do petróleo.

Porém, é justo que o Rio receba royalties maiores do que outros estados, pois os riscos ecológicos, os impactos e os custos sociais da produção do petróleo estão situados em territórios fluminenses. Mas a parcela arrecadada pelo governo federal deve aumentar em relação ao valor atual, desde que se reconsidere a questão do ICMS.

Concordo com Edson Augusto, "o ICMS referente ao petróleo deve, como qualquer mercadoria, ser recolhido no estado produtor" e não no local de consumo. Esta exceção foi proposta, ironicamente, por José Serra, durante a Constituinte de 1988, com o claro objetivo de beneficiar São Paulo, estado que mais consome derivados de petróleo no país, e é hoje governado pelo mesmo Serra. Os constituintes do Rio a aceitaram crendo que os royalties ficariam em nosso estado, como modo de compensar a perda de arrecadação do ICMS e os riscos ecológicos e sociais.

Então, se Sérgio Cabral está sendo oportunista quando arquiteta um movimento sensacionalista afirmando que o "O Rio está sendo roubado", o oportunismo não é privilégio dos políticos cariocas.

O cinismo e o individualismo financeiros, típicos do neoliberalismo, não podem prejudicar a solidariedade necessária ao pacto federativo. A proposta da Emenda Ibsen é um exemplo desta urgência do Capital, retirando do Estado sua necessária função pública de construtor da solidariedade e do bem-estar social. Nela se prioriza os interesses particulares de cada estado e desconsidera-se o planejamento inerente à construção da solidariedade política.

Por fim, lembremos, tão importante quanto a divisão justa das verbas é que se construa um projeto de transparência dos gastos do dinheiro proveniente do petróleo e que este seja aplicado maciçamente em políticas de desenvolvimento social e econômico. Esta ampla transparência seria, também, um sinal de evolução política e de construção da solidariedade constitutiva da razão pública.

Para entender mais sobre a divisão dos royalties:

http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2010/03/12/a+quem+pertencem+os+royalties+afinal+9425725.html

http://ultimosegundo.ig.com.br/bbc/2010/03/18/entenda+a+polemica+sobre+a+distribuicao+dos+royalties+do+petroleo+9432003.html
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Um debate sobre este tema entre os leitores da Carta Maior:
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Bom texto, fazendo críticas e propondo alternativas à emenda Ibsen, no "Na Prática a Teoria é Outra":

quinta-feira, 18 de março de 2010

Resenha dialógica - "Afinal, qual é a das UPPs?" - Por um Rio de Janeiro muito além da Guerra e da Paz.


Em seu artigo “Afinal, qual é a das UPPs?”, o professor Luiz Antônio Machado alerta que é necessária uma abordagem crítica e sociológica às novas questões trazidas pelas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) aos problemas da segurança pública e da cidadania no Rio de Janeiro. Aqui abordarei, de modo breve, o que considero os principais pontos do texto.

1-Para Machado há um otimismo excessivo da grande mídia e dos formadores de opinião, em sua maioria compostos por moradores da zona sul carioca. Ambos esperam que as UPPs promovam o combate ao tráfico “sem violência”, pacificando a cidade e os setores populares, os “favelados”, que são marginalizados pela moral dominante – que ,completando este "circuito" discursivo, é sustentada pelos mesmos atores sociais citados, a mídia e os formadores de opinião.

As UPPs podem ser frustradas no que tem de bom devido ao excesso de expectativa presente no discurso “oficialista”, da moral dos dominantes. Não é por acaso que a maioria das UPPs se encontram na zona sul. O autor alerta que não é possível uma cidade completamente pacificada, mas sim a diminuição da violência, através da repressão do poder armado do tráfico e de uma concepção mais cidadã de polícia militar.

2- O discurso dominante promove uma reificação da ordem lógica de construção da cidadania. Primeiro viriam os direitos civis, só depois destes consolidados através da "pacificação", os direitos sociais.


As UPPs fazem parte de uma política mais ampla de “Guerra ao Tráfico”, apregoadas tanto pelo governador Sérgio Cabral quanto pela mídia dominante, em especial o jornal O GLOBO. Nesta concepção é preciso primeiro pacificar para depois ocorrerem os investimentos sociais. Machado denuncia que devido à estigmatização das favelas como uma área violenta, todo ato de violência poderá ser usado como um modo de justificar mais repressão policial e menos investimento social. Legitimando a ação opressora do Estado em detrimento da construção da cidadania. As reivindicações sociais dos moradores acabam sendo desqualificadas como “subterfúgios” de quem promove um oculto apoio ou, pelo menos, é conivente com o tráfico. Como se a violência não tivesse raízes sociais mais profundas e que todos os que moram nas favelas fossem os responsáveis pelos perigos que assolam o “asfalto” do Rio de Janeiro.

3- Este estigma criado pela moral dominante generalizando a ligação dos moradores de favelas ao comportamento violento e ao crime, além de legitimar a violência policial promove uma supervalorização, de fato, da ação das UPPs. O que é somente um primeiro passo, a diminuição da violência policial nas comunidades e o positivo aumento da sensação de segurança dos moradores (e não apenas os das comunidades) tem sido visto como um fim em si. Deste modo o processo de democratização e ampliação da cidadania vivenciado nas comunidades ocupadas pode ser limitado. Enquanto as Associação de Moradores passam por um processo de esvaziamento, em parte devido sua constante associação (mais uma vez, simbólica e midiática) ao tráfico de drogas, as UPPs passam a ser convocadas para resolver problemas cotidianos dos moradores nas favelas. Segundo Machado é aí que mora o maior risco das UPPs, “que deve ser refletido, questionado e evitado: o de “policializar” a atividade político-administrativas nos territórios de pobreza. Transformar o braço da repressão ao crime em organização política é tudo que o processo de democratização não precisa”.

4-Por fim, o autor propõe que se evite a radicalização, presente no discurso dominante e que pode levar as UPPs a serem tratadas como um instrumento de domesticação e infantilização dos moradores das áreas pobres da cidade. “Guerra e Paz” são conceitos binários muito simplificadores da realidade social. É fundamental lembrar que “não estamos lidando apenas com os fatos relacionados ao crime, mas também com sua percepção coletiva e os sentimentos que ela provoca”. Por isso é preciso “apostar em pequenas mudanças cotidianas que nos afastem da exceção e desfaçam margens”, valorizando as reivindicações dos moradores de favelas, recolocando-os em seu espaço legítimo de diálogo na esfera pública, longe de muros ou estigmas sociais, que só servem para perpetuar o cotidiano da “cultura do medo”, que também é a “cultura da repressão”. Nesta proposta a construção dos direitos civis referentes à segurança pública deve ser acompanhada pela busca de efetivação político-administrativa das livres reivindicações populares por direitos sociais e políticos.
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Termino parafraseando uma frase do escritor paulista Férrez, na qual proponho que reflitamos livres de preconceitos: “Ninguém é inocente no Rio de Janeiro”.