domingo, 23 de setembro de 2007

Sobre o sentido dos sacrifícios


Ando pensando sobre o sofrimento. O sofrimento cotidiano. Quantos sacrifícios são feitos para cumprirmos nossos compromissos com os outros: o trabalho, a faculdade, as pesquisas da faculdade, a família, os amigos, a (falta de) namorada. Podem indagar se todos esses compromissos também não nos satisfazem individualmente, responderei sem pestajar que sim, mas em parte. Hoje em dia trabalhamos tanto que o tempo para a diversão fica extremamente curto. Sem o tempo do lazer o tempo do trabalho fica sem prazer. Cansados e sem tempo acabamos burocratizando nossas relações pessoais. É um ciclo vicioso e irritante que tira nossa energia vital e sufoca nossas individualidades.


Talvez eu esteja estudando demais.

Ou talvez isso não seja um problema só meu.


O tempo que eu gasto fazendo resumos e relatórios burocráticos e desnecessários poderiam ser gastos com Neruda, Bandeira, Caetano, pegando jacaré na praia e dividindo uma porção de pescada com os amigos. A supermodernidade é avessa a amizades. O assalariado é um ser alienado das coisas mais doces da vida.


Trabalhar, estudar, trabalhar e estudar mais pra não ficar desqualificado no mercado de trabalho. Depois serei um sábio professor estressado, provavelmente calvo, explorado pelos barões da indústria da educação superior. Esqueçam o conhecimento, um diploma agora é um signo da exploração. O saber é um saber direcionado para o mercado. Quantos alunos terão tempo e/ou vontade para ler Marx pensando em contruir uma sociedade mais justa? E Weber para uma modernidade menos burocrática? Os alunos terão amor sufiente ao conhecimento para ter a paciência necessária à leitura de Durkheim? A zilmodernidade também não gosta de profundidades. A sociologia das univeresquinas, univershoppings e universupermercadões estará ao nível da superfície mercadológica. Simples disciplina para preenchimento de currículo obrigatório, uma sociologia para boi dormir.

Mesmo sabendo que estou exagerando, um pouco, o horizonte a minha frente não parece ser dos mais animadores mesmo: o mercado de trabalho (das ciências sociais). Para reestabelecer o sentido da minha vida, nada melhor que uma boa teoria heterodoxa: os ensimentos (devidamente filtrados) do pós-estruturalismo. Considerar a inexistências das estruturas seria uma grande besteira pós-moderna, mas pensar nas possibilidades de transformações no interior de certas estruturas consolidadas - como a zilmodernidade capitalista - é muito pertinente. A foto escolhida não foi por acaso, é de uma cena do excelente filme alemão Edukators, este, bem ao modo pós-estruturalista, narra as ações diretas de três jovens que sabotam mansões de ricos empresários alemães. Eles não mudam a sociedade, mas contestam a soberba e o sentimento de segurança da elite alemã. Fruem um gozo momentâneo de poder, prazer semelhante a quem compra uma mercadoria desnecessária sob a hipnose bombardeante de incontáveis anúncios comerciais. São sensações semelhantes pois compartilham a mesma estrutura da sociedade de consumo. Mas uma é autômata, pura posse fria do que a corrente social geral nos impõe, elementar reificação do mundo das merdorias. A outra é quente, transgressora, abre um novo universo de possibilidades para a vida, universo inalcansável para os simples consumistas.
Com o pós-estruturalismo podemos perceber que todo coração é uma célula revolucionária, capaz de reaquecer as relações pessoais, enriquecer o sentido da existência e abrir novas possibilidades, pessoais e sociais, para as nossas vidas, mesmo que momentaneamente só possamos concretizar as do primeiro tipo.

Por tudo isso, não contesto a presença de sacrifícios em nosso cotidiano, sacrifícios são necessários, não se pode fazer tudo. Saber escolher é o segredo da vida. Mas como jovem de meu tempo, e dado a existencialismos perniciosos, ando parando para pensar no sentido dos sacrifícios que tenho feito no cotidiano. Ainda não encontrei uma solução para meus questionamentos, mas acho que seria uma ilusão pensar que só ir mais a praia - será isso possível? - me deixaria mais resolvido, mas provavelmente ficaria mais feliz... ;=)
(PS: Bem que nossa elite política está merecendo uma ação direta a la Edukators.
PS2:Tenho que lembrar de apagar este post antes de começar a procurar emprego!)


segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A Escravidão Moderna na Amazônia - Uma interpretação sociológica


Resumo: Este trabalho tem como maior preocupação pensar as possibilidades contemporâneas de uma reforma agrária ecológicamente e socialmente viável para a região amazônica, capaz de garantir o futuro da floresta bem como fazer valer os direitos trabalhistas e a justiça social para os trabalhadores locais. As partes I e II deste estudo são dedicadas à atuação do Estado brasileiro na região amazônica e a escravidão moderna na floresta, respectivamente, tendo como base em uma interpretação sociológica do livro Vidas Roubadas - a escrividão moderna na amazônia brasileira, da jornalista Binka Le Breton. A parte III é dedicada aos projetos alternativos da sociedade civil para a ocupação da Amazônia e tem como principais fontes a revista Campo e uma entrevista da geográfa professora da UFRJ, Bertha Becker à revista Ciência Hoje.
I - O Estado brasileiro na ocupação da Amazônia: dos anos 50 ao fim da ditadura militar.
A ocupação amazônica pelo homem branco tem seu primeiro grande impulso entre 1880 e 1910, com a época de ouro da extração de borracha natural. Este período coincide com a Belle époque, marcado pelo progresso econômico, modernização das técnicas produtivas no território amazônico e também pelo crescimento dos problemas sociais nas cidades. Já neste primeiro momento as desigualdades e injustiças sociais serão uma característica da ocupação da Amazônia. O ciclo da borracha começa a ter seu fim quando o cientista Sir Henry Wickham contrabandeia sementes de seringueiras para as colônias do Ceilão e Malaia (atualmente Sri Lanka e Malásia), que rapidamente dominaram o mercado internacional. Com a crise de seu principal produto, a economia amazônica entra em crise e o processo de avanço do capitalismo sobre a floresta é momentaneamente interrompido.


A retomada da ocupação da Amazônia só ocorreu na década de cinquenta, confirmada as reservas de petroléo e manganês na região da floresta o governo Getúlio Vargas cria a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA). Três anos mais tarde é lançado pelo governo Juscelino Kubitschek o “plano emergêncial de desenvolvimento”, com três objetivos: criar um banco para facilitar o crédito, construir usinas termelétricas e iniciar um programa massivo de construção de estradas. As boas intenções desenvolvimentistas do programa não previram que com as novas estradas criavam-se vias de acesso para uma incontrolável migração, gerando conflitos e destruição.


Como já podemos constatar, a ocupação da Amazônia pelo homem branco foi sempre motivada por interesses econômicos, promovendo a inserção da floresta ao capitalismo mundializado. A ditadura militar só viria intensificar esta lógica, com seus slogans “Integrar para não entregar” e “Dar terra sem homens para homens sem terra” criam uma versão da história da floresta que esquece dois fatos fundamentais: a amazônia já estava integrada ao território nacional e já era ocupada pelos povos tradicionais da floresta, destacando-se os índios e seringueiros. O discurso dos militares legitimava um modelo de desenvolvimento autoritário de modernizaçao pelo alto da Amazônia, modelo este que perdura até hoje. O pretesto usado para a ocupação predatória foi o de protejer a floresta de ser invadida pelos EUA; o Hudson Institute de Nova Iorque tinha um plano de alagar a Amazônia com a construção de grandes lagos que permitissem às empresas estadunidenses ter acesso para explorar as reservas minerais da região.


Independe de ser verídico ou não o plano estadunidense ele foi o pulo do gato para que ditadura militar promovesse a inserção violenta e desregrada do modo de produção capitalista na floresta amazônica. Em 1966 é lançado pelo Estado brasileiro a Declaração da Amazônia, que dava aos empresários nacionais a maior responsabilidade em ocupar produtivamente o território da floresta. A este convite o ex-deputado Sérgio Cardoso respondeu que “Ao empresariado resta saber onde pode aplicar o seu dinheiro para ganhar mais dinheiro, pois essa é a maneira de atender a patriótica convocação para a ocupação brasileira da Amazônia” (Binka, p.60, grifo meu). O Estado legitimava a lógica destrutiva do mercado na ocupação econômica da floresta. Em 1967 o governo cria o Banco da Amanzônia e transforma a antiga SPVEA em SUDAM, com a intensão de estimular investimentos privados, mas acaba sendo um foco de corrupção e fracasso desenvolvimentista, estabelecendo uma política de insenção de impostos que fazia com que as empresas investissem na amazônia não com o objetivo de gerarem progresso para região, mas para abaterem seus dividendos junto a receita federal.


Quanto ao Estatuto da Terra, projeto de reforma agrária da ditadura militar, nos dizeres de Roberto Campos, “a lei era para ser aprovada, mas para ser colocada em prática". A ínfima reforma agrária que foi efetivada teve na Amazônia um de seus principais pólos, contudo o governo não assegura quase nenhum apoio técnico e de crédito para os assentados rurais, que encaravam situações precárias, muitas vezes vendendo seus lotes. O modelo priorizado pela ditadura militar foi o da grande propriedade, o governo sabia que as fronteiras agrícolas necessitavam de um grande influxo de capital e tecnologia para se desenvolverem, porém, os Planos Quinquenais da SUDAM serviram apenas para que o Estado financiasse grandes empresas e latifundiários em projetos que produziam apenas 15% do que deles se esperava. As obras megalomânas que o governo promovia na região, com o objetivo de se criar infra-estrutura energética e de transportes para a inserção do capital privado, como a transamazônica e grande carajás e tucuruí, pareciam estar mais preocupadas com a legitimação do Estado frente a sociedade – em concordância com a sua ideologia do “Brasil Grande” – do que em desenvolver sustentavelmente a região para o bem-estar de sua população.


O fracasso não era apenas produtivo, mas também social, a chegada da grande propriedade desestruturou os antigos modos de vida dos povos tradicionais da Amazônia, que encaravam a terra como um “dom de Deus, que devia ser habitada e trabalhada, mas não possuída” (Binka, p. 65). “A combinação do rico e cruel de um lado, e do pobre e desesperado, do outro, já foi e continua a ser altamente explosiva”(Binka, p.68). A partir deste momento até os dias presentes os conflitos sociais são uma constante na área da floresta. O Grupo Executivo para Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT), ligado ao Conselho de segurança nacional é criado em 1980 para controlar os conflitos na região. O Estado aparece mais como um mantenedor do status quo amazônico durante o regime militar, sua aparente ausência é na verdade uma conivência com o modelo de desenvolvento que estava em concordância com a distribuição de terra existente no Brasil, na qual 12% da pupulação possuem dois terços da terra, umas das situações mais desiguais do mundo. O Estado pouco fez para conter o processo de grilagem de terras, instrumento pelo qual os grandes fazendeiros privatizaram áreas públicas falsificando documentos. O poder público também reprimiu os abusos de poder que a UDR - organização de classe dos grandes proprietários– exerceu na região amazônica. Quando a UDR surgiu criando uma “rede de firmas de segurança privada que supervisionavam a eliminação de lideranças rurais problemáticas, de sindicalistas e ativistas membros da Igreja e de profissionais de Direito”(Binka, p.69). As grandes propriedades também servem de via para o tráfico de drogas e armas, além de serem o palco da moderna escravidão por dívida. Seja na função de oprimir ou de proteger a população “o papel do Estado está sendo exercido, conforme o caso, pelos militares, pelos latifundiários e pela Igreja”(Binka, p.69).

II - O fracasso desenvolvimentista e a moderna
escravidão por dívida na Amazônia


O modelo desenvolvimentista adotado pela ditadura militar foi um fracasso em termos ecológicos e sociais – como na maioria dos projetos adotados por este regime – mas além disso, na Amazônia também houve um fracasso do ponto de vista econômico. A ocupação da floresta não se mostrou rentosa para os grandes proprietários, como relata a fala de um deles, o fazendeiro Robert Milne, em 1980 : “O que é preciso entender é que ninguém está realmente ganhando dinheiro aqui e, se não fosse pelo governo e seus programas de distribuição de dinheiro, todo mundo estaria encrencado. Como eu disse, ninguém está ganhando dinheiro algum. É uma maneira de evitar de ter de pagar impostos, esperando que alguma coisa grande aconteça. Eu sou daqueles que acham que nada vai acontecer” (Binka, p.84). A ocupação da Amazônia por grandes capitalistas nacionais e internacionais provenientes de regiões urbanizadas, com poucos conhecimentos sobre a vida local não passava de um teatro, um simulacro para ganhar investimentos e insenções fiscais do governo; os grandes fazeideiros e empresários estavam pensando em seus negócios sim, mas não os que tinham na floresta, mas nos que possuiam em outras regiões do país. O melhor negócio que as terras da Amazônia podiam fornecer não era voltado para a produção, mas à expeculação imobiliária, um investimento de lucro a longo prazo autorizado pelo Estado, mas já desacreditado pelos menos otimistas, como Milne. O melhor exemplo talvez seja o da Volksvagem, dona de uma enorma fazendo na Amazônia, com o único próposito de abater seus impostos... das suas fábricas no ABC paulista e aumentar os lucros da empresa... com a venda de carros.


A estrutural corrupção também se presentifica nas relações entre o Capital e o Trabalho. Sem ter leis a que respeitar os grandes proprietários buscam tirar o máximo de mais-valia dos trabalhadores, desrespeitando os mais básicos direitos trabalhistas. A consequência comum deste processo é a escravidão por dívida; adiante tentarei descrever as relações sociais que estão por traz desta realidade tão degradante.


Na escravidão por dívida o escravocrata “não possui a pessoa, apenas a usa por quanto tempo precisar dela” (Binka, p.25). Os trabalhadores são seduzidos pelo contrato cativo, no qual ganham salários maiores com a obrigação de pagar todos os mantimentos que lhes forem fornecidos durante a empreitada na fazenda, dessa forma contraem a dívida. No contrato alternativo, o livre, os salários são menores, mas deles já se abate os gastos com a alimentação. Muitas vezes a escravidão não é exercida conscientemente. É comum que os fazendeiros e seus servidores vejam no trabalho coagido o único modo de disciplinar os “incivilizados peões” às regras do trabalho. Até que ponto esse discurso é sincero –enquanto visão de mundo de classe- e quando passa a ser uma racionalização, ou mesmo uma mentira calculada para justificar tal padrão, este sim, bárbaro, de trabalho, só uma análise sociológica e etnográfica mais profunda poderá revelar. Os próprios trabalhadores escravizados acabam naturalizando a opressão e iludidos (segundo o sentido do conceito de illusio, de Bourdieu) pelos seus tradicionais valores de honra e auto-estima, o escravo endividado “acredita firmimente que não pode ir embora enquanto não pagar a dívida” (p.25).


O duplo mecanismo do isolamento e da dívida facilitam a moderna escravidão na Amazônia. Forma-se uma “cultura de fronteira onde não existe lei” (p.30). Podemos pensar na ética o aventureiro, que segundo Sérgio Buarque de Holanda estavam nas bases das relações sociais da coloniação brasileira para descrever o processo de ocupação da Amazônia pelo capitalistas nacionais e internacionais. Aqui não importa construir um modelo produtivo regular, que sirva tanto para o presente como de base para a sociedade futura. O que importa é enriquecer ao máximo, o mais rapidamente quanto for possível, e com o gasto do mínimo de esforço; todos, inclusive os peões, pensam assim. Portanto, pensando sob esta lógica: para que investir em um moderno padrão de trabalho, perder dinheiro com gastos provenientes de direitos trabalhistas se os fazendeiros podem maximizar seus lucros (ou minimizar seus prejuízos) com a escravidão por dívida? Na selva amazônica a lei do homem branco é a do capitalismo selvagem, ganha o mais forte, os grandes fazendeiros. O frágil e complexo sistema de sinergia da Amazônia, que sustenta a maior reserva genética do mundo é violentada e posta em risco pela sanha da expansão descontralada das monoculturas e suas commodities.


Os personagens da rede social que envolve a escravidão por dívida formam uma complexa cadeia de relações na qual todos dependem uns dos outros. O fazendeiro “quer uma fonte de mão-de-obra temporária e barata para realizar um trabalho específico, desmatamento, plantio, manutenção de pastos (...), o máximo de mão-de-obra por um período específico” (Binka, p.25, grifo meu) – ou seja, sem investimento em capital constante, a maximização da produção se dá pelo capital variável, os trabalhadores de quem se extrai mais-valia. O fazendeiro precisa de um empreiteiro para agenciar os peões, este é o gato, que “verifica [se] a área esta bem definida, calcula quantos trabalhadores são necessários”(Binka, p.26), além dos equipamentos e mantimentos a serem usados. As vezes gatos mais poderosos agenciam “subgatos” para conseguir contratar centenas e até milhares de trabalhadores para uma grande empreitada. Os “supervisores” são os pistoleiros, uma espécie de vigias e inspetores armados da escravidão por dívida. Os peões são subdivdidos em: 1- peões moradores, naturais da região, “possuem algum tipo de rede familiar. Se desaparecerem, mais cedo ou mais tarde alguém vem procurar por eles”(p.26). 2- Os peões do trecho, vem de estados vizinhos do norte, nordeste e Minas Gerais, “se desaparem niguém vai sentir falta” (Binka, p.27). Estes trabalhadores passam por um processo de desterritorialização violento, desenraizados culturalmente de seu local de origem passam a enfrentar uma realidade social desconhecida e por isso são os que mais sofrem com os abusos dos gatos e fazendeiros.
Portanto, para conseguir o mínimo de produtividade necessário para manter a “faixada”, os “modernos” capitalistas se adaptam a dinâmica social da região amazônica, aliando-se aos mandões locais, os agimentadores do trabalho. Por isso, mesmo que seja uma cadeia de interdependências, o gato é a peça chave desta cadeia.


Voltanto a Sérgio Buarque de Holanda o personalismo é outra marca da cultura amazônica que perpassa a escravidão por dívida. Os contratos de trabalho são feitos verbalmente, com base na honra da confiança pessoal e na promessa, os trabalhadores são seduzidos pelos gatos com ofertas de farto emprego, trabalho honesto e ascensão social, para no fim acabarem escravizados. Os contratos legais de emprego e a regulamentação Estatal não passam de abstrações que não fazem parte do cotidiano da relações de trabalho na amazõnia. As relações entre os fazendeiros e peões é marcada pela violência e o paternalismo, duas faces faces da mesma moeda. A fala de Cícero, um dos gatos da região é muirto elucidativa: “É claro que a gente cuida dos empregados. Da mesma maneira que vocês cuidam do gado. Se a gente não cuida deles eles não produzem direito” (Binka, p.52). Este “cuidado” muitas vezes se exerce na forma de coação violenta para o trabalho, tratar os peões como “crianças indiciplinadas” é uma forma de justificar a necessidade da violência “paternal” de gatos e fazendeiros. Os peões são constatntemente acoados pelos fazendeiros e gatos, passando por espacamentos violentos e aplicações de técnicas de tortura. Em algumas fazendas são encontrados cemitérios clandestinos. Quando conseguem fugir os peões encontram dificuldades em conseguir proteção da polícia, conivente com os mandões locais, e acabam achando o refúgio fora da esfera do Estado, na Igreja.


Em torno da escravidão por dívida forma-se uma complexa cadeia humana, formada por peões, donos de pensão, prostitutas, fazendeiros (patrões), gatos e pistoleiros, “e cada um é dependente do outro” (Binka, p.46). A honra, baseada em costumes e acordos verbais, é o código de reciprocidade fundamental para o bom funcionamento deste sistema, pois "as oportunidades para traições em cada nível [da cadeia] são inúmeras. ...o xis da questão é que todos precisam de todos, e todo mundo tem que correr alguma forma de risco”. (Binka, p.47). “O gato terá muitos outros jogadores no seu time: capatazes, pistoleiros, o cantineiro, o cozinheiro, o enfermeiro, o caminhoneiro, o policial que se faz de cego quando uma carreta de peões passa pela sua barreira. O gato precisa estar “de bem” com a dona da pensão; é ela quem vai lhe providenciar peões; mas ela precisa que ele os leve, pagando a conta. O peão se refugia nos braços da prostituta, em troca de um dinheirinho. Ele precisa do gato na mesma medida em que o gato precisa dele. Depois de tudo o peão tem que comer. (...) O patrão precisa realizar a tarefa, mas deixa essa execussão para o gato. O gato precisa realizar a tarefa, mas não pode fazer nada sem sua equipe de apoio. O patrão pode tapear o gato mudando o preço no meio do serviço. Ele pode não pagar nada, deixando o gato com as contas salgadas dos mantimentos e do pagamento dos trabalhadores. Da mesma maneira, o gato pode levar o dinehiro o patrão e desaparecer sem fazer o trabalho, ou pode fazer mas não pagar os peões. Ou pode pegar os peões da dona da pensão e não pagar a conta para ela. Por sua vez, ela pode obrar acima do preço dos peões que frequentam seu estabelecimento. / Até mesmo o peão não é totalmente indefeso. Ele pode pegar um adiantamento e fugir ou pode fazer um trabalho malfeito e deixar o gato em má situação. Ou pode enganar a dona da pensão e fugir sem pagar a conta, ou enganar a prostituta, ou mesmo ser enganado por ela, que pode roubar seu dinheiro quando ele estiver bêbado” (Binka, p.46). É o dinheiro por tanto o elemento social individualizador, que pode corromper está complexa rede de reciprossidades.


Mas se nesta cadeia todos dependem de todos, as relações de poder nelas presente são assimétricas. Se “o sistema de poder na sociedade brasileira está baseado em uma rede complexa de favores e lealdades” (Binka, p.76), certo está que quem tem mais poder terá mais dívidas de favores a lhes serem retribuídas. Está noção de “dívida de favor” sustenta ideologicamente - via a tradicional crença na honra, ainda presente em parcelas da sociedade brasileira semi-paternalista - a escravidão por dívida; oculta e naturaliza tanto para a sociedade civil –inclusive os peões endividados- quanto para o poder público –em especial a Justiça e a polícia- a superexploração que sofrem os escravos por dívida e somente em situações de violência extrema está dominação começa a aperecer como algo absurdo, em especial para os peões que sofrem com espacamentos, perseguiçoes e mesmo a morte.

III - Os projetos alternativos: da ecologia do desenvolvimento ao desenvolvimentismo ecológico

Contra o projeto desenvolvimentista predatório estabelecido pela ditadura militar e as mazelas sociais e ecológicas dele provenientes surgiram projetos alternativos de diferentes grupos e classes sociais; vamos destacar aqui três importantes portadores de uma esperança de transformação positiva para a região da amazônia brasileira, que cada um, ao seu modo específico, mas dialogando entre si, pensaram e sentiram como o funciona a dinâmica social do desenvolvimentismo predatório, buscando mudar suas estruturas sociais danosas e possibilitar um desenvolvimento sustentável para a floresta e sua população. Estes agentes da mudança são a Igreja, os seringueiros e os intelectuais.


A Igreja católica cria em 1975, sobre influência da Teologia da Libertação, a Comissão Pastoral da Terra, que “tem por missão ajudar a população rural a conseguir acesso à terra, titulação, assistência técnica, relações trabalhistas regulares, e dar-lhe apoio legal” (Binka, p.24). Na ausência da ação reguladora do poder público, cabe muitas vezes à Igreja o papel de combater a escravidão por dívida na amazônia e lutar em defesa dos direitos humanos mais básicos. Por tomar uma posição de apoio às lutas dos trabalhadores rurais e da reforma agrária, membros da Igreja, mesmo com todo poder e tradição de sua instituição, também são alvos de represálias de capangas dos fazendeiros locais.


O caso mais recente foi o da missionária Dorothy Stang, morta no interior do Pará, em 12 fevereiro de 2005, aos 73 anos. Defensora assídua de um modelo de desenvolvimento sustentável, irmã Dorothy já havia recebido diversas ameaças de morte, mas seguia firme com afirmações como: “não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade, sem devastar”.


O movimento dos seringueiros ganha importância na década de setenta e durante os anos oitenta. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, no Acre foi a sua instituição mais conhecida, e Chico Mendes, um dos fundadores e presidentes deste sindicato, seu maior expoente. Os seringueiros de Xapuri tiveram idéias originais para as formas de lutas sociais e ecológicas que respondiam os anseios não apenas de sua classe, mas de diversos setores das populações tradicionais da floresta: índios, seringueiros, castanheiros, ribeirinhos e extrrativistas vegetais em geral. Contrapondo-se à forma de trabalho cativo a que estavm submetidos, desenvolveram um modelo de reforma agrária baseado nas reservas extrativistas: uma área de propriedade coletiva dos povos da floresta, onde o compromisso com a preservação ambiental está associado com o desenvolvimento econômico e social com base na coleta extrativista dos diversos bens naturais da floresta. Desse modo, ao mesmo tempo em que se resolveriam os conflitos pela posse da terra na Amazônia, instalariam-se formas de modernas relações de trabalho na região. O empate foi a forma de luta pacífica que os seringueiros desenvolveram para defender as suas causas. No empate os seringueiros e suas famílias ficam em frente aos tratores, na área que seria desmatada por ordem dos fazendeiros, até que estes desistam, garantindo então a preservação do terreno. Estes trabalhadores sabem que os conflitos de classe estão no centro de suas lutas. Júlio Barbosa de Aquino, primeiro a substituir Chico Mendes no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri dizia no final da década de oitenta: “Por que o Chico foi o primeiro ecologista a ser morto nesse país? Porque Chico era, antes de mais nada, um líder sindical que lutava pela posse da terra e esse é o principal problema do Brasil. Se você falar só de ecologia, tudo bem, as pessoas te ouvem e te aplaudem. Mas se você defender também a pose da terra, mesmo que seja para preservar a floresta, a coisa muda de figura”.


Os números da CPT confirmam a afirmação de Júlio, de 1985 a 2006, registraram-se 1.104 ocorrências de conflitos com assassinato. Nestes conflitos morreram 1.464 trabalhadores. Destas ocorrências somente 85 foram levadas a julgamento. Foram condenados 71 executores e somente 19 mandantes. Mesmo com o fortalecimento da luta dos trabalhadores rurais e a importância política que atingiram movimentos como o MST, a impunidade no campo e a transigência do Estado com os grandes propritários continuam sendo uma realidade no Brasil contemporâneo. (Os dados recentes da violência no campo se acham em: http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=3336).


Os conflitos sociais e ecológicos na amazônia tamém tornaram-se preocupação para intelectuais dos centros urbanos. Bertha Becker, professora e pesquisadora da UFRJ, é reconhecida mundialmente pelos seus estudos e propostas de desenvolvimento sustentável. Para ela o ambientalismo preservacionista deve ser superado, pois não conseguiu barrar a expensão da agropecuária capitalizada e não consegue por si gerar as demandas de melhores (e mais modernas) condições de vida, que começam a ser exigidas pelas populações amazônicas. Para a criação de um modelo de desenvolvimentismo ecológico são essenciais um aprimoramento da ciência e da tecnogia, que permitam atribuição de maior valor para os bens naturais da floresta, de modo que eles consigam competir economicante com as commodities. A extração das riquezas naturais da amozônia devem ser integradas a cadeias tecnoprodutivas, estas por sua vez integradas a produção industrial não predatória (de remédios, cosméticos e borracha, por exemplo). Para aumentar a produtividade, a reforma agrária deve trocar o modelo tradicional proposto pelo Incra e adotar as vilas agroindustriais cooperativadas (ou fazendas solidárias). Neste modelo deve-se pensar em uma logística do pequeno que viabilize a produção familiar; estabeleceria-se uma densidade mínima necessária a produção; a aglomeração dos trabalhadores e suas famílias permitiria uma melhor implantação dos serviços de saúde, educação, informação e modos de agregar valor aos produtos; falicitaria-se o apoio governamental, pois se acabaria com o isolamentos dos assentamentos tradicionais; seriam organizadas cooperativas para melhor acesso ao mercado; e por fim supenderiam-se os títulos de propriedade, sendo liberadas apenas conseções de uso da terra. Essas medidas permitiriam uma maior regionalização das ações, com o fortalecimento tanto da ação autônoma da sociedade civil, quanto da ação estatal, que estaria mais organizada pera estabelecerr parcerias público-privadas, junto capital nacional ,eficazes para a população e não apenas para os empresários licenciados.


O projeto de Bertha Becker ainda é uma utopia, mas uma utopia com plenas condições técnicas e sociais de se concretizarem. O dilema desta via é o mesmo da luta dos seringeiros e missionários da CPT, é muito bonita no papel, mas ao questionar a organização da propriedade da terra acaba ganhando a oposição dos poderos ruralistas ligados à produção de commodities e à expeculação imobiliária. Portanto, a implantação de projetos alternativos para a amazônia passa necessariamente pela luta de classes. Somente numa conjuntura social em que as classes e grupos sociais que reivindicam um projeto de desenvolvimento alternativo para a amozônia, por meio de suas lutas cotidianas e revindicações políticas conseguirem obter hegemonia junto à opinião pública e ao poder estatal, somente aí serão capazes de superar trasigência do poder público e a sólida organização do agronegócio, ambos associados entre si e mantenedores da devastação social e ecológica do status quo amazônico.


Como disse Júlio Barbosa, há quase vinte anos atrás, “as idéias e propostas do Chico vão continuar”. E não apenas continuam como se aprimoram, pois não apenas as idéias e propostas de Chico Mendes ainda se fazem necessárias, mas de todos trabalhadores e missionários que estão na amazônia, como de todos trabalhadores e intelectuais, seja do norte ou sul, do Brasil ou do mundo. As implicações ecológicas da organização social da exploração da amazônia não cabem apenas aos residentes daquela região, ainda naturalmente exuberante, mas a todos que se preocupam com o bem estar da vida humana na terra pelos próximos séculos. Ainda é possível que os humanos apreendam coletivamente que a maior saciedade da maior de suas ganâncias financeiras, não fará com que a mercadoria e todos os lucros por ela proporcionados se transformem em substância alimentícia ou respirável, isto não fará o melhor dos químicos. Igualmente difícil será transformar um novo deserto na maior floresta do planeta terra, que lá já esteve um dia, mas que sua paisagem futura nos fará difícil a lembrança.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Ressalvas - A esquerda brasileira e o combate à corrupção


Certos setores da esquerda estão dando pouca importância à conivência que o governo Lula vem tendo com a corrupção no Congresso Nacional. Sem cair em um legalismo pueril, ressalvas são fundamentais caso a esquerda consiga, um dia, realizar um projeto sólido, democrático e popular para o Estado brasileiro. Seguem alguns apontamentos sobre o caso da absolvisão de Renan, mas que também servem para outros casos:


[1]Tomem cuidado quando falarem que a corrupção é estrutural ao capitalismo e que temos coisas mais importantes para nos preocupar agora do que a absolvição de Renan. As duas afirmações não deixam de ser verdadeiras, mas apenas em parte...


[2]A corrupção de modo algum é exclusiva ao capitalismo, ela se origina na privitivatização de interesses que deveriam priorizar o coletivo, no caso, os valores abstratos do Estado e sua concepção de "honra burocrática". No Brasil a racionalidade e a impessoalidade estatais são historicamente dificultadas pelo familismo, o personalismo e o patrimonialismo, bem mais do que em países do Norte, são essas - associadas ou não ao Capital - as grandes fontes de corrupção entre nós.


[3]Temos coisas muito mais importantes a fazer, mas isso não quer dizer que combater à corrupção não seja também muito importante. Mesmo que simbolicamente - considerando-se que outro corrupto entrasse no lugar de Renan - a exclusão do chefe da assembléia dos senadores seria muito valiosa, e isso Freud e Gramsci explicam.


Ou alguém acha que a democracia não saiu derrotada?


[4]Derrotar politicamente a elite brasileira e seus vícios também passará por superar a transigência com que se trata a corrupçao no país. Se não se faz isso de um ano para o outro, é bom que se comece o quanto antes...
-
[5]Últimas questões:
A quem serve a corrupção do Estado brasileiro?Como essa corrupção pode existir com tamanha transigência do povo? Nossa corrupção à brasileira - descarada e escrachada - pode ser encarada como estando diretamente ligada à luta de classes (ou melhor, à ecassez de ação coletiva classista) em nosso país.
[6]Portanto, o combate à corrupção deve ser um dos pontos fundamentais no programa dos partidos e frentes de esquerda brasileiros, pois é pré-condição para que uma agenda política socialista e democrática possa ser minimamente efetivada no congresso. Esta reivindicação, que pauta-se em um conhecimento realista sobre os vícios de funcionamento do Estado brasileiro, não pode mais ser confudida pela militância distraída com um cansado "moralismo udenista", anacrônico e oportunista, que até hoje ronda insistente pelo Brasil.